Eu ando pelas calçadas e parece que a beleza do mundo se acabou. Os bosques estão sendo destruídos, as águas contaminadas e as pessoas, a passos firmes pelas ruas, doutores, mestres, graduados, exalam sorrisos plastificados e ameaçadores, são os saqueadores da civilização; sou um deles também, mas com um título menor. Alguns gurus da vida moderna dirão que meu problema é no espírito ou na mente, e é isso que deturpa minha visão do mundo; no fundo ele é bonito como o sorriso do Silvio Santos. Mas a idéia de que estão destruindo o bosque me entristece. Ou sou eu mesmo o lenhador a vender a madeira, numa autodestruição, para depois comprar antidepressivos e livros de auto-ajuda? Como não tenho resposta, me lembrei de um conto sem fadas, que é mais ou menos assim. Ele me lembra de algo muito próximo:
“Era uma vez uma aldeia ao lado de um bosque. Entre a aldeia e o bosque passava um rio e o povo era feliz porque ouvia os pássaros e bebia água limpa. Então vieram as máquinas e era preciso educar as crianças da aldeia para produzirem com qualidade. Começaram a cortar as árvores para fazer o papel dos livros didáticos, e nos livros vinha escrito que as crianças deveriam ser obedientes, honestas e ter fé no futuro. Ouviam que, depois de formadas, iriam construir um mundo cada vez melhor. Dentro das salas de aula os pequenos liam os textos que deixavam claro que era preciso preservar a natureza. Mas pelas janelas da sala de aula viam o bosque sendo corroído pelas máquinas, dragões metálicos que soltavam fumaça preta. Progresso, democracia, comunicação. O advento do mundo global havia chegado para sempre.
Enquanto as máquinas que cortavam árvores para produzir o papel que levaria a mensagem, “preserve a natureza”, num ritmo de “tempo é dinheiro”, assustavam as crianças, alguns filósofos perceberam a contradição de se cortar um bosque para se escrever mensagens ecológicas e iniciaram vários debates, que também gastavam quilos de papel na confecção de apostilas e textos críticos. Resultado: começaram a ganhar dinheiro com as palestras; inclusive dentro das próprias fábricas de papel, onde eram aplaudidos pelos grandes empresários e, mais do que rápido, os filósofos ascenderam socialmente: pagavam prestações de carros, casas e viagens a paraísos artificiais, como Miami. Quando entrevistados sobre a destruição contínua do bosque, respondiam que era o nosso mundo quem estava crescendo e não o bosque que diminuía.
Quando as árvores do bosque se acabaram, a aldeia começou a importar madeira de outras áreas. Para tentar amenizar a situação terminal, criaram leis que obrigavam o reflorestamento, mas as empresas não reflorestavam nem 10% daquilo que devastavam. Ninguém cobrava o cumprimento da lei. Então, para disfarçar, as empresas criaram propagandas onde tudo era verde de novo e lá estava o bosque, virtualmente novo. Nessas propagandas a música era de alegria. Não havia cidadão da aldeia que não aliviasse sua consciência com o teor das mensagens. O mundo era tão bom, que as empresas ainda ganhavam desconto nos impostos; e tudo graças às propagandas ecológicas.
O final foi lógico, por isso não há fadas nesse conto e nem milagres de Natal. A terra, sem as raízes das árvores, escorreu para o rio, que ficou assoreado. A aldeia foi inundada. Engenheiros, advogados, professores, políticos e empresários tentaram, em reuniões em sala com ar condicionado, uma solução de curto prazo. Ficou definido que, sempre que houvesse enchente, a aldeia estaria em estado de alerta e/ou emergência. E foram pra casa de helicóptero. O Estado estava salvo, pois tinha os seus asseclas.
O povo comum, que colocava cadeiras nas calçadas e tocava violão pra lua, foi-se embora com suas malas de papelão e trouxas de roupas na cabeça, pois não pertenciam mais àquele mundo. Haveria outro bosque e outro rio limpo nalgum canto da Terra. Por isso Deus havia errado ao fazer o mundo redondo, melhor que fosse achatado, infinitamente achatado, assim seria possível uma distância segura dos patetas acadêmicos neo-liberalizados que chegavam com o mundo globalizado; e chegavam como uma chuva de granizo sobre a simplicidade dos raros homens do mundo. Não há guarda-chuva que agüente o granizo, melhor fugir. Fim.”
Acima, tudo é uma metáfora, lógico: imagine que a sociedade seja um bosque e cada homem uma árvore. Cada vez que formamos um mestre, um doutor, um graduado é como se transformássemos uma árvore numa máquina fria e calculista, apta a ser a primeira num mundo competitivo que destrói a si mesmo de forma contínua e planejada. O que será do Bosque?
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