sábado, 19 de fevereiro de 2011

A múmia



Ainda não descobri o motivo de se contar histórias de terror para crianças. É evidente que a gente fica com medo durante a noite. Eu era um desses medrosos da noite. Deus, era uma tortura quando meu pai apagava a luz. O medo começava instantaneamente. Imaginava antes da criação, uma profunda escuridão. Até Deus acendeu a luz para começar a história do universo e meu pai apagava para começar a noite de sono. Às vezes torcia para o interruptor quebrar para a luz não desligar nunca mais. Até fiz promessa para que isso ocorresse. Mas o escuro é poderoso e inofensivo. Mas isso a gente só descobre depois de ler “O Saci”, de Monteiro Lobato. Antes disso você é prisioneiro do medo do escuro da noite.

Minha situação piorou quando a televisão — sempre a maldita televisão — anunciou que iria passar um filme de terror sobre uma Múmia que um arqueólogo encontrava no Egito. Filme em preto e branco.

Pronto, a pouca coragem que eu tinha foi-se. Só a propaganda já me matava. E não adiantava meu pai dizer que era só brincadeira. Quando passasse o filme estaria acontecendo ao vivo, era assim e pronto; nada me convencia do contrário. Na noite que passou o filme dormi com minha mãe, desalojando meu pai que não gostou nada do troço.

Com o passar dos dias, ahhh, piorou o medo. Eu via nitidamente o fim do filme, depois a múmia olhando o horizonte lá no antigo Egito e, em seguida, começava caminhar. Eu tinha uma noção de geografia e sabia que a múmia, para chegar ao Brasil, tinha que atravessar o Atlântico. Ninguém iria vender um bilhete num navio para um monstro. Isso me acalmava. Mas depois não deu, veio o clarão.

— ...ela já está morta, pode andar por debaixo d´água!! Ahhhhh!! Socorro!! — disse para mim mesmo, sob as cobertas.

Comecei assim a segunda parte da tortura da imaginação. Ela começava a andar em direção ao oeste, cruzava a Argélia, chegava na praia, entrava na água e vinha caminhando pelo fundo do oceano. Tubarões não me salvariam, não comeriam um cadáver de pano. Em poucos dias chegaria ao litoral brasileiro. De Ubatuba a Cruzeiro seria um pulo. Chegava ao limite quando a imaginava caminhando pela rua de minha casa, subindo a escada e a sentia na janela, no lado de fora, começando a forçar para entrar e me matar. Nessa hora o sangue gelava, um nó subia a garganta e não tinha alternativa.

— Pai! Não consigo dormir.

Ele sentava na cama e ficava vigiando meu sono. Foi duro esquecer a múmia, foram vários dias de viagens sob o mar que nos separava da África.

Agora já sou adulto e quase não tenho medo de dormir sozinho. Alguns dias atrás, meu filho disse-me coisa parecida. Imaginava o monstro do filme que assistira chegando à porta de seu quarto. Perguntou-me o que deveria fazer, estava com medo. Cocei a cabeça, olhei para ele, lembrei-me de minha múmia e disse;

— Pega o ‘saco de dormir’ e põe perto da minha cama e dorme.

— Ufa, pai, que legal!!

Dormiu como um anjo.

3 comentários:

  1. Delícia de texto, Sá!

    Mas é isso, somos matílha para isso, enfrentar medos conhecidos e, principalmente, os medos desconhecidos.

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  2. Ressábios de "As primeiras horas do dia". É Sávio no seu melhor.Choraoguatambu

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  3. beleza, moçada. é o tipo de texto que gosto também. leve como um vinho de verão mediterrâneo, mas como disse o alexandre, nos faz sentir dentro da matilha.

    e o alíco guatambu tem razão, se houvesse uma 2ª edição de 'as primeiras horas do dia', seria um conto a incluir. vlw.

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