A mente humana é uma profusão de neurônios em tempestades elétricas que resultam em movimentos corporais involuntários e voluntários. E também é normal a criação fantasiosa de uma ‘realidade’, maravilhosamente desconexa do concreto, oposta ao que realmente sentimos sob as solas dos sapatos, quando caminhamos por nossas ruas e nos relacionamos com nossa cultura.
Na linguagem popular, as terras do Vale do Paraíba nos arredores de São José do Barreiro e derivados eram conhecidas como O Fundo do Vale; cresci ouvindo isso. Um dia, que não me lembro qual, nos proibiram de usar tal nomenclatura. O ‘Fundo do Vale’ passou a ser o Vale Histórico. A primeira coisa que perguntei, e não obtive resposta, foi: “qual lugar do Vale do Paraíba não era Histórico?”
Da mesma maneira que há o fundo do coração, o fundo da alma, a mente profunda, havia para mim, desde o começo dos tempos, o Fundo do Vale, que nunca achei pejorativo. Pelo contrário, ele sempre me revelou a imagem de uma borda de um mundo parecido com a Terra Média, de Tolkien: um lugar aberto em si mesmo, com sua dinâmica urbana nas partes próximas do rio Paraíba; suas cidades de arquitetura Colonial sobrevivente; a beleza da ‘cordilheira’ da Mantiqueira no horizonte, as chamadas terras altas e as cidades tecnológicas. — Detalhe: a ‘cordilheira’ da Mantiqueira pode ser vista onde não está. Eu a vejo brilhante e azul no final das ruas de minha cidade, como se fosse logo ali, depois de virar a esquina. Na via Dutra, às vezes, está a poucos metros do pára-brisa, basta esticar a mão pra fora da janela do automóvel, quando a polícia não está às vistas, e tocá-la. Mágica da montanha. Assim, cada prédio que sobe no horizonte de minha cidade, é um pedaço a mais da Montanha que desaparece. Se eu não puder continuar a vê-la, ela desaparecerá de minha cultura(?).
As cidades do Vale Histórico, — já que é pra fragmentar, melhor seria Vale Colonial — estão tão próximas culturalmente de qualquer outra cidade do próprio Vale do Paraíba, que, ao contrário da insinuação separatista possessiva e adjetiva que a invenção do “Vale Histórico” quer propagar, elas são, na realidade, o mesmo saco “afarinhado” com as mesmas violas e valores valeparaibanos, que são os mesmos do sudeste do Brasil. Objetos de diferenciação cultural, tal como ocorre com Ouro Preto e NY, só na fantasia de historiadores. Onde, no Vale, não há formação tropeira, bandeirante e engenharia inglesa? Vide os trens, que ocorreram nesse mesmo sudeste do Brasil e na América Latina. Nossa! Na minha cidade há descendentes de italianos, vou criar o Vale Italiano.
Porém, graças a apropriação indevida de um adjetivo universal, o ‘Histórico’, tenho que ocupar minha memória e linguagem para identificação de um Vale Não-Histórico, que no frigir dos ovos é o próprio Vale do Paraíba; mas quem sabe, com ausência total de memória, sem pessoas falando português, sem gente postando em blogs, sem ver TV (novela), sem beber cerveja, sem churrasco, fazendo festa junina, etc. Ahhh! tenha a santa paciência! Quê Vale Histórico, o quê!?
O samba do crioulo doido não dá tantas voltas. Um amigo, que por coincidência mora no Vale Histórico, diria que isso é ‘o peso do nada’. É só o mundo acadêmico a todo o vapor, edificando o nada com ares de expropriação de um resto, supostamente, não histórico. “Pô, aí já é filosofia”, diria ele.
Monteiro Lobato viveu em Areias e não gostou da vida ‘histórica’ de lá, e diga-se isso de passagem, na ‘macióta’. Quer comprovação? Então leia um dos livros dele, também dedicado à essa cidade: Cidades Mortas. Sua maior crítica, ao longo do livro, era pela falta de um universalismo, ao mesmo tempo em que criticava a proliferação de homens taperas, perdão, digo, históricos.
Usemos Lobato como exemplo: enquanto estava em Areias, Lobato viveu no Vale Histórico; quando voltou para Taubaté, passou a viver no Vale não-Histórico. É isso? A quem devo aplaudir por essa clareza de raciocínio?
É o tipo de conversa que me faz sentir como um habitante do estado do Texas, ou do Arizona, estados xenófobos dos EUA. Fragmentar o mundo para edificar uma cultura, que muitas vezes não existe, e que, só passa a ter identidade quando se separa dos corpos estranhos identificados pelo academicismo, como algo não inerente a ela mesmo, mas que no fundo é o próprio sangue, é um sinal claro de alergia. O vale Histórico é, em termos medicinais, o Vale Alérgico a si mesmo. Estamos diante de uma patologia, e das grossas.
Confesso minha pequenez acadêmica e minha insistência satírica, em algumas vezes, mas onde estará o Voltaire do Vale do Paraíba, para nossa salvação universal? E se outros Vales vierem a ser inventados? Virá o dia em que Campos do Jordão se denominará o Vale Sinfônico. Guará, Aparecida e Cachoeira Paulista denominar-se-ão o Vale Cristão. E assim emergirá uma sequência de fragmentações de base alérgicas. Deus!! E a Frei Galvão também clamo: onde estará o nosso Voltaire, para dizer-nos que tudo é Vale do Paraíba, São Paulo, Brasil, América do Sul e Latina? Tudo ao mesmo tempo agora!! Até os Titãs entenderam isso.
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