quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Fiat Lux


O deus cambriano

dedicado a Salman Hushidie: escrito em 2003

Ninguém sabe como foi que tudo começou. Digo que ninguém sabe como foi que tudo começou na Terra. Há somente especulações. Como somos humanos não temos muito tempo para tentar descobrir o mistério das coisas. Temos é que usar o tempo para ganhar uma grana e conseguir a sobrevivência. Gastamos tempo para trabalhar transformando recursos naturais e, com o dinheiro do trabalho, compramos os recursos consumíveis que depois jogamos fora. Tente imaginar a proteção de uma floresta sendo custeada com a exploração da própria floresta, que com isso vai desaparecendo. Ou, para receber aumento salarial do governo, o mesmo tem que aumentar os impostos. Assim o próprio funcionário público é quem paga o próprio aumento. É algo tétrico.

Como nem todos são funcionários públicos, muitos montam seus próprios negócios e tentam o enriquecimento fácil para viver no conforto da modernidade. Só que para isso necessitam descobrir algo que possa ser vendável. E em tempos neoliberais, a figura de Jesus é o que mais vende; e vende bem. Sabemos que o discurso do velho Cristo é antiliberal, mas o liberalismo tem disso: vende até mesmo aquilo que pode exterminá-lo e abre espaço para concorrências. E é nessa lacuna que se passa nossa história.

Em meio a tantas Igrejas que são abertas, um estranho grupo abriu uma Igreja diferente, que tinha sua base doutrinária num Meteoro. Uma pedra que havia caído do céu há mais de 250 milhões de anos, causando o desaparecimento de milhares de seres do tamanho de insetos. Dentre os sobreviventes, a origem do Homem. Por isso era o tal meteoro, segundo aqueles novos crentes, quem deveria ser chamado de Deus e não Jesus. Concorrência faz bem ao capitalismo.

Na parede do altar estava o desenho da pedra vindo em direção a Terra. De costas para ele, um sacerdote vestido tal como um trilobito que rezava em língua Cambriana. Como ser escolhido, especial, que a nós humanos havia originado, estava o pikaia. Toda sua saga, sua jornada, seus sacrifícios, seus milagres estavam expostos em afrescos bem desenhados, a lá computação gráfica. Quase em hologramas.

A doutrina de tal Igreja se baseava no acaso, nos dados voando soltos pelo universo. Alea jacta est. Foi César quem disse isso e ao invadir Roma com suas tropas, o que segundo leis romanas era um crime sem precedentes. Cezar não só burlou a lei do velho Senado, como se tornou imperador. Mas o melhor não foi isso, o melhor foi conseguir chegar até a cama de Cleópatra. Os dados alcançaram o meio das pernas da mulher mais linda do mundo à época. O acaso era divino. Mesmo causando um ar de paradoxo, tal frase era batata nos sermões dos monges da Igreja do Meteoro.

Com tempo surgiram os primeiros protestantes da IM, (Igreja do Meteoro). Apesar do número de fiéis crescer vertiginosamente, o protesto parece ser ingrediente embutido nas crenças. Quem pode dizer? O fato é que um materialista, - sempre os materialistas -, resolveu soltar aos quatro ventos, após pesquisas, que o tal meteoro cambriano poderia ser o cocô de um grande ET, que passando por aqui, fez de nosso planeta uma conveniência fisiológica. Ou seja, cagou sobre o planeta. A pelota, mais a força da gravidade fizeram o atrito pós-primordial diminuir o número de seres vivos que andavam por aqui. Quem poderá negar que dentro da pelota não havia vermes que se deram bem na Terra, e até, quem sabe, não deram origem aos primeiros primatas, que segundo Charles Darwin, são a origem dos homens. (?) Logo, não seríamos fruto de um Deus do acaso, mas sim de uma necessidade fisiológica de um grande ET, satisfeita ao ‘acaso’, por aqui. Havia assim um acaso metafísico e um fisiológico. As divagações levaram à intolerância.

- HERESIA!! Não viemos da flora intestinal de um King Kong via-lácteo, mas sim do Deus do acaso.

Foi o grito da alta cúpula da IM. Abriram tribunais para inquérito das acusações dos materialistas que rebaixavam a doutrina da IM a uma pelota de cocô extraterrestre. A reação da IM recebeu a solidariedade dos Islâmicos, que também têm uma pedra que veio do céu, a qual foi encapada por paredes de tijolos e hoje é circundada por milhares de fiéis que andam quilômetros no sentido horário, - o oposto pode parar o universo -, pois sabem que aquele dado foi jogado por Deus, num Alea jacta est devidamente programado num gráfico cartesiano.

- Devemos queimar as maçãs podres!!

- É a vontade do Meteoro!!

Os materialistas não tiveram tempo de resposta. Fugiram. Não puderam questionar se o Acaso, o Meteoro e o Movimento formavam uma só pessoa, a santíssima trindade do Acaso cambriano.

E o que aprendemos com essa história: que há divagações possíveis e outras impossíveis, apesar de todas elas surgirem de nossa massa encefálica. Alea jacta est.

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