Eu tinha uns vinte anos e acabei indo trabalhar numa grande metalúrgica de minha cidade. Fabricava vagões, rodas, aros e longarinas. Fui parar no CPD (Centro de Processamento de Dados), ainda em tempo dos grandes computadores. Eram do tamanho de guarda roupas. Minha função era operador de computador. Era um dos quatro caras que trabalhavam seis horas por dia, para que a máquina nunca ficasse sozinha enquanto tivesse que funcionar. Às vezes trabalhava no período diurno, às vezes, no noturno. Era no período da noite que a máquina cuspia um gigantesco número de relatórios para serem usados no outro dia. Atualizações.
Foi numa bela madrugada, eu sozinho naquela sala de ar condicionado, ouvindo o barulho das impressoras gravando informações, as luzes todas acesas, o ar da madrugada me vencendo e eu querendo dormir. Só que ainda faltavam três horas para o fim de meu turno.
O único modo de acalmar o desejo de ir embora, era tomar um cafezinho, ou ir até ao banheiro. E foi o que eu fiz aquela noite, como em todas as outras. Só que naquele dia, um segundo antes de começar a urinar no vaso, vi uma borboleta com uma asa presa na superfície da água do vaso sanitário. Uma gotícula e ela morreria afogada. Podia ver suas perninhas se movendo no ar, tentando sair, mas não conseguia se desprender da água. Era tão sensível, vulnerável, que a água lhe era espessa, quase uma superfície sólida. Mas a água leva tudo para baixo e logo ela iria junto com a descarga pelos tubos do esgoto.
Segurei minha urina, voltei ao CPD, que ficava a uns 30 metros do banheiro e peguei um clips sobre a mesa e retornei ao banheiro. As máquinas estavam paradas. Os programas que esperassem. A auditoria da contabilidade, as notas do faturamento, as férias de alguns haveriam de esperar o resgate da pobre borboleta.
Fiz do clips uma pequena pinça e com todo cuidado, fui até sua pequena asa e a resgatei do vaso. Levei-a até uma mesa de escritório e liguei um pequeno ventilador. Fui secando a pobre. Logo começou a se mexer, foi recuperando a vitalidade. Na janela que dava para uma espécie de jardim de entrada da fábrica, soltei-a no ar. Ela voou em plena noite, em meio à brisa, em meio ao barulho da oficina funcionando na noite, na longa noite daqueles que trabalham para enriquecem a outras pessoas. Fiquei olhando uns quinze minutos a pequena voadora. Sentia-me um homem de verdade, pois era capaz de permitir a vida. Dar valor àquilo que realmente era bom.
Antes de retornar ao trabalho, voltei ao banheiro, pois ainda não havia urinado. Depois, sentando diante da máquina, vi que se tinham passado 90 minutos. As máquinas estavam paradas há mais de uma hora, durante todo período do resgate. Voltei aos relatórios. Não ficariam prontos dentro do prazo, pois a manhã chegaria logo e o que não fora atualizado, ficaria para a próxima madrugada. Minha vida não mudou em nada por isso, pelo atraso do serviço não feito. O capitalismo não merece respeito. Nem ontem, menos hoje.
Porém, a lembrança do vôo da pequena nunca me saiu da mente. Batendo asas em meio à fábrica de metal. Meu coração não era de plástico, nem nunca foi. Sou um homem maior por isso. Digno de pensar em poder mudar o mundo.Ninguém pisoteará meus sonhos. Um brinde à borboleta.
Grande Sávio Sidarta Gautama!
ResponderExcluirpor aí. só as lebramças zen é que ficam. isso já deveria ser um sinal pra todos nós, que nos preocupamos com um tempo que ainda não existe...
ResponderExcluirAmigo Jainista, salve as borboletas!
ResponderExcluirobrigado, mestre A&V. jainista, mas escorregando pro zen-budismo-keroauc, porque tem o vinho, a cerveja, a cafeína e a sopa de ervilha em meu caminho. eu paro ao longo da jornada para me sentar sob a árvore e saborear a vida (ou pelo menos tento) eh eh eh eh
ResponderExcluirvc é um convidado constante em minhas 'preces', também conhecidas como divagações sob as árvores.
hoje vou ouvir a canção de vcs: TERRA, do caê
por mais distante....
abrace Vera. diga-lhe que tudo vai dar certo.
às filhas tambémmm...