Ele
fora batizado com o nome do deus pagão grego, Dioníso, o deus do vinho, mas por
pressão da mãe foi para o seminário. Mal havia começado a década de 1950 e ele
já estava preso em uma cela de cama dura, com uma mesa simples, a boca sempre fechada
e ‘presença’ assídua nas infinitas aulas de teologia.
Conseguiu,
com sacrifício, se ordenar, quase um milagre, e foi enviado para uma cidade
pequena. Suportava bem a vida de clérigo. Resignou-se diante da beleza da vida
e deixou que o ‘destino’ o levasse. Guardava secretamente uma mágoa da mãe. É
fato que não sabia o que desejava fazer da vida à época da adolescência, e nem
agora o sabia, mas enfim, era padre e rezava missas e ouvia confissões e era
convidado para aniversários das figuras imponentes da cidade. Um trágico papel
medíocre na comédia humana.
Mas
ele tinha um segredo, algo que o incomodava, o Carnaval. Nos dias que antecedia
a festa, era tocado pela eletricidade dos desejos que emanavam dos corpos que
logo estariam refestelando no salão a todo suor, samba, cachaça e com toda a
glória que a libido pagã podia permitir. Trancava-se no quarto e tapava os
ouvidos até que fosse quarta-feira de cinzas. Assim foram inúmeros os
carnavais.
Mas
no Carnaval de 1959, em plena sábado, quando se preparava para dormir, foi
visitado pelo deus grego, seu xará, com vinhas penduradas entre os chifres e
uma taça de vinho em mãos. Falou com voz de veludo, “Levanta-te, Lázaro!”.
Assustado, Dioníso se ajoelhou diante do deus grego. O deus se aproximou e lhe
entregou uma fantasia, um Arlequim, que na mitologia do Carnaval Renascentista
é quem rouba a Colombina do Pierrot. “Pare de rastejar, homem, e siga seu destino!
Vá ser feliz!”
Assim
padre Dioníso se transubstanciou em Arlequim e saiu pelas ruas. Sentia um frio
na espinha e foi atraído pelo som surdo do bumbo que emanava do clube da
cidade. Entrou com os braços erguidos e com os pés lépidos. Nadou em
serpentinas penduradas, jogou confetes como se fossem bolas de gelo e bebeu cerveja
gelada direto de uma fonte sagrada: o copo de uma mulata. E mais do que isso, a
segurou pela cintura e adentraram o salão dançando em círculos, no sentido
horário, numa honra aos deuses.
Acordou
abraçado àquela escultura corporal marrom, numa pensão da periferia e já com o
sol alto; logo entendeu o que havia acontecido. Voltou para casa da paróquia e
passou o domingo mergulhado em culpa. Queria confessar, mas não podia, ele era
o único clérigo da cidade. Mas veio o crepúsculo e de novo o desejo lhe aflorou
a carne. Olhou pra fantasia sobre a cama e não resistiu, à meia-noite saiu de
novo, um Arlequim procurando perder-se no domingo de Carnaval.
Dessa
vez bebeu do copo de uma ruiva, com o corpo coberto de lantejoulas douradas,
uma Valquíria pronta a levá-lo ao Valhalla, o paraíso dos vikings. Mas antes
rodaram pelo salão, pousaram para fotografias, fizeram juras de amor,
casaram-se, tiveram filhos e viajaram para Paris nas breves horas em que o
baile avançou pela madrugada; a fantasia dos fantasiados não tem limites.
Aquele
Carnaval de 59 tatuou na carne de Dioníso as quatro cores sagradas da vida: a
mulata do sábado, a ruiva de domingo, a loira da segunda-feira e a morena da
terça-feira. Por isso acordou na quarta-feira de cinzas sem culpa alguma, um
milagre. Eis o mundo que não negava a seus filhos o eterno retorno da força
vital da vida: paixão, vinho e música: evoé, Baco!
Ele
abandonou a batina e saiu pelo mundo. Trocou a fantasia de padre pela do
Arlequim, a única coisa que lhe dava sentido à vida. Como fiquei sabendo da
história? Eu li isso em seu diário. Eu o conheci ao fim de sua vida, numa cama
de um asilo. Soube que, minutos antes de sua morte, perguntaram-lhe senão
queria um padre para extrema-unção. Ele disse que não, e ainda falou: “...estou
rezando para o deus Dioníso!”.
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