sexta-feira, 18 de abril de 2014

100 Anos de Solidão- Gabriel Garcia Maquez



É estranho saber que um homem pode ir perdendo o cérebro pelo caminho. Que as nossas doenças degenerativas esfarelam nossa mente em milhares de fragmentos. Gabriel Garcia Marquez foi perdendo o contato com o mundo nesses últimos anos. Foi se esquecendo de seus personagens, de seus familiares, de si mesmo, até que se desligou por completo no dia 17/04/14.
As demências degenerativas nos levam a um caleidoscópio de lembranças, desconectadas do fluxo temporal, ou talvez, quem sabe, onisciente no tempo, por isso tão confusas pra nós, meros seres binários. Talvez seja assim que ‘deus’ enxerga o mundo e a si mesmo. Se existe um ser perfeito, ele percebe a realidade num desconexo contínuo, que é o todo. ‘Deus’ deve ter todas as doenças degenerativas possíveis, afinal ele sabe tudo, a tudo sente e a tudo confere. Talvez seja essa a graça, o amor profundo que nos concede em dias de solidariedade, quando acorda feliz após uma noite de orgasmos: a graça de poder esquecermo-nos com indivíduos possuidores de uma história cheia de amores, frustrações, amigos, inimigos e do gosto pela arte. Os pacotes de insanidades imputados à nossa racionalidade, mera inquilina de nossa massa cerebral, nos projetam num vácuo a-histórico de nós mesmos. Eis o sadismo tecnológico de deus.
Em 100 anos de solidão, ou em 100 anos de esquecimento, o que seria melhor pra nós, meros seres inferiores, premiados pela rebeldia de Prometeu ao nos dar um pouco do fogo de Zeus, aqueles raios incandescentes, as sinapses, que iluminaram as massas gordurentas das trevas ‘criadas por Deus/Zeus’? Lembrar ou esquecer, onde está a dádiva? Gabriel Garcia Marquez quando ‘entrar no céu’ irá se lembrar de que esqueceu grande parte da vida? É isso que ‘deus’ queria dele?
Já li o livro, 100 Anos de Solidão, três vezes. Meço o tempo que me resta de vida pela quantidade de vezes que ainda poderei ler essa obra extraordinária. Em dias de esperanças e otimismo, creio ainda ser possível outras duas viagens pelo labirinto dos Buendía. Porém, os fatos de Macondo ainda estão vivos em minha memória. Guardo as imagens dos delírios literários de Garcia Marquez na alma, são partes concretas do ser transitório e contingente que sou. Quando encontrá-lo céu, num espaço reservado aos ateus, o ajudarei a reaver a memória e ainda falarei das Mil e uma noites.  
Por mais que venha a viver, não vou me esquecer do acesso de loucura de José Arcadio Buendía, patriarca dos Buendía, causado por uma lucidez extraordinária, ao constatar, atônito, que o dia de amanhã seria igual ao de hoje e que o depois de amanhã seria a cópia do de amanhã e assim, em moto perpétuo, até que os olhos se fechassem e não restasse dia algum. E mais, que haveria tantas mortes quanto eram as vidas que se pudesse ter. E que depois da morte, haveria (uma) outra morte, e depois outra, até que, finalmente, nos depararíamos com a sublime solidão do criador, em profundo auto-entendimento de que sempre fora um ser literário.
O último Buendía nasceu com rabo de porco, herdado de um tio-âvo iguana que havia copulado com uma das ancestrais, em tempos imemoriais. Enfim, no livro, era a hora da comprovação do destino que assombrara ao nascimento de todas as gerações dos 100 Anos de Solidão: um rebento trágico que não teria tempo para receber um nome, nem história, nem memória: o próprio fim. O último Buendía encarnava o 'Avatar do Esquecimento', lugar onde ocorreria a morte de todos. Até daqueles que já haviam morrido e sobreviviam na memória dos que ficaram vagando por Macondo.
O Buendía rabo-de-porco foi devorado vivo pelas formigas, enquanto o Caos destruía a cidade num ‘vendaval que levou a porta da casa com batente e tudo’. Foi dessa forma que Macondo foi varrida da face da terra. Tal como a memória de Garcia Marquez o abandonou antes mesmo que seu corpo partisse para a outra vida, em que conhecerá outra morte, e outra, e outra...
Adeus, Gabriel Garcia Marquez, deus criador dos Buendía: o começo, o meio e o fim de tudo o que é mais 'fantástico' na literatura sul-americana.                

5 comentários:

  1. Já fui um leitor voraz.Considero ,Cem anos de Solidão uma obra prima.Mas confesso que o li completo apenas uma vez.isso de pois de umas cinco tentativas e desistências...Começava a ler o livro e por um coisa ou outra tinha que parar a leitura.Até que,dez anos atrás ao passar quinze dias em Campinas,na casa de um Concunhado,eu consegui ler o livro todo e fiquei maravilhado com a narrativa.Quem sabe um dia eu o releia novamente.

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  2. sim, depois de um certo tempo de leitura, o fluxo de palavras e a sa imagens
    vão tomando conta do espaço ao nosso redor...grande tom..

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  3. é uma pedrada...um tiro...um tesouro a ser descoberto...e vc me ajudou a redescobri-lo e avalia-lo melhor ...valeu mano....

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  4. é o fluxo de nossa caravana on the road,

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