terça-feira, 5 de agosto de 2014

A Senhora de Avalon


    Discordo de Albert Camus. Ter consciência, ao contrário do que diz o filósofo-poeta, é a única coisa que pode nos salvar das armadilhas do mundo. Primeiramente, podemos, de maneira sutil, nos libertarmos de nós mesmos. A natureza, a aurora, a mãe, - a mulher que nos traz ao mundo - esse conjunto de afetividade primordial nos promete coisas que não pode cumprir. E são dessas promessas que nos alimentamos e nos constituímos como seres no início dos tempos. Compõem o primeiro espelho em que nos miramos. E só através da consciência podemos quebrar essa projeção e libertar o demiurgo, o bluesman, o andarilho, essa máquina desejante que vive dentro de cada pessoa. - "Eu gosto de pessoas, não de gêneros!".  Ainda vislumbro essas palavras escorregando por entre os dentes da Senhora de Avalon, uma ninfa, como se fosse uma verdade adormecida no tempo. Palavras expostas assim, num gesto simples. 
      Às vezes me pergunto: 
      - Quem é você? Um pateta que ouve Ninfas?
      Então me respondo:
      - Quer definição melhor do que essa?
      Então, pela lógica do bobo da corte, a consciência serve, antes de tudo, para nos definirmos como seres supostamente em ato? Sim, responderia eu a mim mesmo, mas não só isso. Também é por onde nos movemos em direção ao poente, ao inevitável fim.
- Mas por que se tornastes um bobo da corte?     
Essa história é longa. Eu era o dono de um Castelo, bem fechado, de paredes negras, circundado por um fosso de água verde escura; a ponte sempre eriçada. Guardado da luz do sol e de paixões humanas. O chefe de minha guarda, em armadura negra, nunca permitiu que as visitas chegassem ao centro do Castelo. Protegidos, cérebro e coração, eu viva em debates com o Guardião de minha biblioteca, com seu cabelo branco escorrido, grudado no crânio; a plataforma de nossos temas era o ceticismo gratuito. Posso dizer que tal postura é sedutora. É o ceticismo quem revela a idiotice do mundo ao nosso redor.
 Mas sabe-se que toda fortaleza tem um ponto fraco e não é inteiramente intransponível. Num fim de inverno de tempos passados, fui surpreendido pela Senhora do Bosque, que se apresentou em meu salão, assim, sem mais nem menos, diante de um chefe da guarda aturdido e sem graça. "Não sei como ela entrou!", repetia o Armadura Negra a todo instante. A Senhora do Bosque se apresentou como esposa de outro Senhor, de um feudo além das cercanias de meu castelo cercado de vizinhos que nunca conheci e onde à frente ficava o bosque. 
Resumindo a história, alegou que estávamos ligados pela espada de Excalibur, e aquilo era uma loucura, um tormento. Perguntei onde havia me conhecido, ou me visto? Disse que fora na feira dos saberes que ocorre regularmente na clareira do bosque; quando me viu, - às vezes faço um pequeno passeio pela feira, mas sem dirigir qualquer palavra aos seus visitantes - foi como se já me conhecesse antes da criação dos tempos. Disse isso e foi embora. Desde então tudo mudou no castelo, que passou a ser mais poroso e frestas começaram a surgir nas muralhas. A luz começou a entrar sem pudor algum. Ela ainda atravessava a ponte para deixar o castelo quando o chefe da guarda me confidenciou: 
       - As Senhoras dos Bosques, na maioria das vezes, são ninfas. 
       - As ninfas pertencem aos faunos. 
       - Sim, mas essa pertence a um feudo cristão.
       - Eu não sou cristão, nem fauno!
       - Mas é feio como um fauno, senhor, se me permite?! – Antes ouvir isso que ser surdo.
Desde então a luz plácida das palhetas impressionistas invadiu meu castelo. O que deveria fazer? Não conseguia mais pensar em outra coisa, a não ser no perfil simétrico da Senhora do Bosque, seu cabelo claro, com fios que bailavam leves ao tocar da brisa descompromissada, seus lábios e sorrisos sarcásticos, maldosos às vezes, mas belos e leves, sempre exalando um aroma de hortelã, talvez fruto da minha imaginação, mas era assim que eu a sentia.
Ela estava sempre a alguns passos de minhas mãos, como se flutuasse numa luz de neon dos cabarés de boa música. Suas novidades, palavras, seu jeito de ver a vida, tudo o que vinha dela me paralisava no tempo, e uma felicidade brotava assim, sem o menor pudor. - Queria partilhar meu mundo com ela, mas que mundo seria esse? Toda vez que lhe dizia algo, ela reagia com um leve movimento da sobrancelha, com se dissesse, "Entendo!"
Porém ela se foi. Levou meu cigarro o vinho e o coração. O que me restou? Tocar um blues, claro! E ouvir Going to Califórnia, do Led Zeppelin. 

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