À
noite fui assombrado por maus pensamentos. O sono parecia uma película
inacabada que não saía do lugar. No fundo da Terra o magma mantinha sua
incandescência e o sol, distante, soprava sua radiação na clara noite
lunar. Entre o magma e o sol, dois calores profundos, eu, sobre a superfície
do mundo, com o coração frio, atinei no espanto. As únicas coisas que me acalmaram
foram as equalizações de Beck, todas feitas em Saturno, diria alguém mais sábio. E como
um verme sobre a maça, caminhei de coração parado. A lua era só um espelho que
refletia a luz do sol.
Os
animais dormiam e me lembrei que vivo cercado pela idiotice acadêmica, pelo
princípio do não pensar, do sentir-se num escafandro de escuridão. Melhor se
virar e seguir em frente nesse mundo circular em que eu sempre volto ao mesmo
ponto e não posso desistir dele. Olhei no espelho e vi que meus lóbulos
cerebrais funcionavam como engrenagens, minhas mãos calçavam luvas metálicas
para construir a patologia certificada do mundo; minhas palavras eram um
gráfico cartesiano medonho cheio de uma perspectiva que não era a minha.
Dançar
sozinho à noite, longe dos olhos do mundo, procurando no inefável a solução que
não existe, é o que se pode fazer quando o coração é frio. A ausência de deus é
onisciente, queria lhe dizer coisas, mas ele não sabe nem mesmo usar as libras;
a árvore deixou cair uma folha, queria me dizer algo; um ser tão perecível
quanto eu. Pedi-lhe perdão por tê-la ignorado e pensado num suposto ser perfeito que
não é, e que vive se escondendo na luz e/ou na escuridão profunda de minha
mente.
Sinto
o gosto irremediável do fim e devo me curvar a ele, como faria um balseiro, ou
mesmo Buda, quando entende que nada se pode fazer sobre o mundo, porque de tão
transitório que é, se torna
essencialmente uma vertigem num abraço de eternidade nos acordes do meu violão. Eis meu espelho, minhas cordas estrelares, a mutação
do nada que vai até o mais profundo dos vazios. Penso nos retratos dos filhos
em preto e branco nalgum lugar do parque de diversões, onde no céu não havia
cometa algum. Minha boca ficou seca como o Mojave, muito além do gosto do
algodão doce.
Me
sentei às margens do rio e pedi tigelas de arroz às pessoas do mundo, àquelas
mergulhadas em afazeres descartáveis. Pensei em todas as moedas que neguei aos
miseráveis da Terra. Uma dor cortou minhas vísceras. Eu tinha negado coisas a
mim mesmo. Me deparei com homens vestidos de ternos e que só falavam de
negócios e religiões, de apocalipses e julgamentos e de quanto o diabo
devoraria meus ossos. Mas não sou um espírito?
A
carne passa, o dirigível passa, o sorriso da moça passa, amarela e se torna uma
passagem pra lugar nenhum. Ah! O destino que não existe, mas que passa a ocupar
o sentido das trilhas que não controlamos, como ao olhar o jardim e contar as
folhas e dizer que aquela, especificamente aquela, estava fadada a ser o número
999. E não poderia ser de outra forma, porque estava escrito nas estrelas, até
em algumas que nem mais existem.
Vi
uma velha mulher pegar uma folha seca no chão. O pato navegava livre pelo lago
circular e limitado de tempo e espaço. As ondas na água eram o momento em que
tempo e espaço se acasalavam diante de meus olhos que, segundo a segundo, se desligavam
do mundo. Eis só mais uma forma de sentir o fim, o irremediável fim que está por vir
nas ondas digitais do mundo ao qual não pertenço. Quanto menos me entrego ao
desejos estoicos da vida, mais vivo me sinto e mais vezes danço com a morte de
rosto colado, enquanto Beck canta que não há porque sentir medo, as
histórias humanas não significam nada. Até menos um pouco. É que essa noite fui
assombrado por maus pensamentos e por isso estou tão otimista.
Sob um céu
doentiamente azul do dia seguinte, a música rolou suave. O vento ressecou as
frestas da pele, as árvores polinizavam livremente e a água se preparava para
cair. Ao longe não via anjos e nem demônios voando livres no céu. Fluíam no vento alto
com tanta arte e sem nenhum compromisso com a realidade, os abutres, os urubus, as rapinas da podridão, como se dissessem: Morra em paz, estamos aqui para
nadificar você.
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