terça-feira, 9 de setembro de 2014

Contos absurdos: O quadro



O marchand da galeria Degas estava embalando a última aquisição de Amadeo, um freguês assíduo, que observava as outras obras com ar alvissareiro. Sua bengala girava feliz e cortava o ar com elegância. Mas ninguém imaginaria que ele se depararia, assim, de repente, com um quadro de uma mulher nua e em tamanho natural. Nada de anormal não fosse a mulher retratada, sua esposa, nua em pelo. A palavra adultério tomou-lhe a alma de assalto.
Cada vez que olhava o quadro, mais escuro se tornava o mundo. Não era só a precisão do rosto, mas até a marca no seio esquerdo era a mesma. O corpo da esposa exposto em tamanho natural, em plena galeria, era uma punhalada. Sua intimidade estava aos olhos de todos. Um escárnio. Foi falar com o marchand, aquilo tinha que ter uma explicação: Adamo, quem é o autor daquele corpo nu em tamanho natural, ali naquela sala? Oh! Sr. Amadeo, o senhor não perde o faro, é belíssimo, mas é um anônimo, imagina, em pleno século 21!
Amadeo se controlou, mas acabou por oferecer uma boa gorjeta ao marchand em troca de informação: A única coisa que sei é o nome do antigo proprietário, Adorno, posso lhe dar o endereço se quiser? Sim, Adamo, eu preciso, quero saber sobre o pintor.
No carro Amadeo deu o endereço ao motorista. Era numa cidade nos arredores. Isso facilitaria sua busca. O antigo proprietário poderia lhe dar informações mais precisas. A ideia de que sua esposa, a bela Lisa, fosse amante de um pintor o consumia por dentro. Não havia outro motivo para pousar nua, a não ser num romance. Pensava na honra, na raiva e num revólver.
Montalbán tinha poucos habitantes. Em poucos minutos o carro de Amadeo parou diante do endereço indicado. Era uma bela casa com uma escada que Amadeo subiu com dificuldade. Bateu na porta da mansão que logo foi aberta. Parecia sua própria casa.
O homem que apareceu se apresentou como advogado: Meu nome é Millinton, em que posso lhe ser útil? Gostaria de falar com o proprietário da casa. Isso não vai ser possível, ele morreu. Como? Bem, isso é difícil de dizer a um estranho, sou do banco, toda a propriedade foi confiscada, ao que parece, estamos diante de um crime. Um crime? A esposa está presa, acusada de assassinar o marido para receber o seguro. Ela forjou um acidente? Não, envenenamento. Que horror! Descobrimos que ela é a amante de um pintor, pousou nua para ele. É por isso vim até aqui, vi na Galeria Degas parte do acervo do dono da casa, queria saber onde havia conseguido suas obras. Estamos vendendo os bens da casa, a hipoteca era grande, sabe como é, negócios são negócios! Mas diga-me, quando ocorreu o crime? Um mês, mais ou menos.
O Advogado indicou um salão onde havia mais quadros, queria ser gentil, mas foi cumprir outras tarefas. Amadeo tranquilizara-se. Sua Lisa estava em casa, não na cadeia. Deveria ser uma coincidência, ou na pior das hipóteses, Lisa tinha uma irmã gêmea. Intimamente começou a rir da situação, mas isso durou pouco. Acima da lareira estava o quadro de Adorno, uma cópia fiel do próprio Amadeo. Sentiu uma leve vertigem. Estava diante da própria imagem, a diferença era que não tinha a barba. Isso talvez tivesse impedido o advogado de o acusar de ser Adorno, um fantasma trapaceiro. Era melhor sair dali logo.
No trajeto de volta ia pensando na história toda. Uma sósia da esposa que era amante de um pintor e que matara um sósia seu para ganhar uma bolada do seguro. A vertigem continuava. Resolveu ligar para casa, a voz Lisa, com certeza, o acalmaria. Mas quem atendeu foi o mordomo: Lisa não está, senhor! Mas aonde ela foi? Disse que iria prestigiar a exposição de um jovem e talentoso pintor que conheceu há pouco. Ok, Max, obrigado. 
Amadeo sentia algo de trágico sobre o corpo. Chegou à sua casa e manteve-se em silêncio. Passou a maior parte do tempo pensando no que iria fazer. Resolveu esperar Lisa no bar da mansão. Ela chegou só ao fim da tarde. Sorria muito e anunciou ao marido que havia descoberto um talento das artes plásticas. Amadeo mostrou-se interessado, sorriu, indicou seu lugar à mesa e disse ao mordomo: Max, traga aquele chá especial para minha esposa.     

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