Edgar,
ainda com o gosto do pão da manhã na boca, atinou para aquele fato quase que
metafísico, é que em seu vilarejo, Havel, entre a montanha e o mar, nunca
ninguém havia sido assassinado. Um lugar esquecido pelo Diabo. Mal limpou a
boca e saiu aflito em direção à rua, sua xícara permaneceu exalando a fumaça
provinda do calor do leite.
Na
barbearia relatou a Ferdinand sua descoberta. Com a navalha na mão, o barbeiro
viu a luz elétrica refletida no fio da lâmina e pensou em silêncio, como se
ainda processasse aquela informação trazida ainda sob os primeiros hálitos da
manhã, “...me faltou só um pouco de coragem!”. Mas em seguida manteve a postura
de assombro com a novidade: Então, Edgar, quer dizer que não há entre nós um assassino?
Exato, e isso está me causando um certo estranhamento, nós nunca nos matamos!
Sinceramente não sei o que pensar e ainda mais pela manhã! Bem, nesse caso, deixe-me ir, vou procurar padre Orson. Que
seja, até porque lá vem o meu primeiro freguês.
Na
igreja, padre Orson ouviu cabisbaixo. Talvez rememorizasse confissões,
procurasse limites, ou quem sabe também fora mordido pela mesma intrigante
constatação de Edgar, a de que Havel era uma terra sem assassinos. Acabaram
caminhando até ao cemitério atrás da igreja. Diante das lápides, viram os nomes
comuns de pessoas comuns, que morreram corroídas pelo tempo e muito pouco se
lembrava delas: Mas padre, não é estranho que estejam mortos sem deixar lembranças
significativas?! Você quer dizer que eles simplesmente passaram pela vida?! Sim! Mas
isso não seria bom? Creio que sim! Então por que isso o está incomodando? Não
sei. Posso dizer que agora passou a me incomodar também.
Intrigado
e sem respostas, Edgar se despediu do padre e seguiu até o jornal do vilarejo. Oscar,
o editor, lhe deu o catálogo com todas as primeiras páginas do
jornal organizadas em ordem cronológica. Não havia uma manchete que burlasse a
rotina dos fatos. O mais grave fora um acidente com um barco num inverno há alguns anos. Oscar coçou a cabeça, mergulhou na mesma frequência sombria
em que Edgar se encontrava e disse: Nunca tinha pensado nisso, nenhum de nós é
um assassino, ou tem na família alguém do tipo. Não acha isso estranho, Oscar?
Creio que sim, mas acho que muitos diriam que isso é sinônimo de felicidade.
Então por que saber disso me joga numa agonia asfixiante? Não sei dizer.
Sete
dias depois, à noite, no encontro semanal do conselho de Havel, todos se olhavam
assustados, entre eles, afinal, não havia um assassino, ou mesmo um ancestral
criminoso. A dúvida de Edgar correra o mundo. Por mais que quisessem discutir
assuntos de relevância administrativa, não conseguiam esquecer os assassinatos
que nunca ocorreram. Por que eram tão diferentes?
À
porta do salão do conselho, ao fim da sessão, Edgar conversou com médico da
cidade, o Dr. Isaac: Não sei se isso é um sintoma, talvez seja só obra do
acaso, somada a uma baixa probabilidade de ocorrências de conflitos! Ou melhor,
doutor, que dezenas, centenas de assassinatos ocorreram simbolicamente, psicologicamente,
num ambiente privado e sigiloso da mente! Provavelmente isso tenha acontecido.
Então o senhor e o padre Orson sabem quem são os nossos assassinos virtuais? Isso
eu não posso afirmar, não sou um psicólogo e mesmo que fosse não poderia
dizê-lo.
Edgar
voltou pra sua casa, naquela noite, com um profundo sentimento de frustração. Setes
dias haviam se passado, tempo suficiente para se criar o universo e descansar a
posteriori, mas ele ainda não tinha a
resposta para a ausência histórica de assassinatos. Em sua varanda, na
cadeira de balaço, ficou olhando o mar; sua casa era afastada. Adormeceu e não
ouviu os passos no piso de madeira. Despertou de um sonho onde era uma criança com o metal gelado da faca entrando em sua garganta. Uma mão pesada tapou-lhe a
boca e seu grito ficou contido enquanto morria com o sangue escorrendo intensamente.
O carteiro o
encontrou pela manhã e chamou o delegado; logo uma multidão se postou diante de
sua casa. No seu velório não disseram nada. O padre mal fez a benção. Em sua
lápide foi escrito somente seu nome, a data de nascimento e a da morte. E
o jornal local não publicou nada, nem mesmo no obituário..
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