quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Apenas siga o caminho





Quebra-se a noite em milhares de lâminas. A voz penosa do cachorro vem pela bica d’água, escorre pela montanha e exala solidão. Agora posso conversar no meio do ermo sem que ninguém me ouça. Meu cérebro é composto por milhares de silêncios, e de várias vozes parricidas. Onde estava o sol quando eu corria pela estrada? O Diabo sabe que desejo entregar-lhe alma em troca de um desejo satisfeito, algo que dê sentido à vida. Depois posso me esconder dele no fundo de um lago no México. O Axolotle me protegerá. Mas antes disso tem o abismo. Ele nunca quis olhar pra mim. Era só voar. Eu me lembro.
O tempo parece uma menina de pele clara brincando num balanço no quintal. Olho pra ela ternamente e desejo acariciá-la nos cabelos enquanto eles esvoaçam pelo ar, no ir e vir daquele brinquedo mais velho que o mundo. Mas a cada carinho derreto por dentro. Sinto o sangue congelar. Ela é também a morte. Minha voz parece dentro de um túnel em eco de mescalina. Ela continua sorrindo pra mim. Eu vou morrer, mas preciso deixá-la balançar sozinha, entregue aos próprios fantasmas, ao pesadelo que tece como uma Penélope depressiva. O mar me chama de volta às profundezas, ao coração líquido da paz que me fez caminhar sobre os dois pés.
Beck, o canto dos golfinhos é o canto dos Messias? Sim. É isso que faz o gosto do sangue ser bom por entre os dentes? Sim, mais o sol e o sal e o barulho do vento diante das falésias. Mas e os barcos que vão ao longe? Só mais um funeral. Quem morreu? Todos nós. Beck, você vai me deixar continuar a pensar no que ela teria feito? Mesmo que eu diga sim, você já não mais quer o mesmo caminho, uma palavra pode destruir o mundo todo. Beck, sabia que no Talmude está escrito que todo homem, pela manhã, antes de mais nada, deve alimentar os animais, depois orar e só assim servir-se do primeiro alimento do dia? É o que fazemos, damos ração aos cães e depois tocamos violão enquanto o café escorre pela cafeteira, quase sempre quando o sol está nascendo. Beck, quantas canções deixarão de ser ouvidas? É o preço que se paga quando se rasga o papel de seda que unia os mundos.
Estou preocupado com o seu sonho. Relaxa, Beck. Não, não é normal ver assim, num sonho, numa manjedoura, uma mulher com tatuagens na púbis, principalmente em árabe. Já sonhei que tocava no Led Zeppelin! A megalomania é um dom dos poetas. Eu não sou poeta. Isso não é você quem julga. Quem me dirá isso, um oráculo? Não, aqueles que não te entenderam e lá na frente, quando não houver mais depois, nem amanhã, vão pensar o quanto deixaram de ser o que realmente eram. Beck, nada é, realmente, em minha vida. Nem na minha.
O que são aquelas luzes? Você sabe, é a polícia correndo atrás de suas ideias. Por quê? Você transforma tudo em palavras e conotações, as pessoas não gostam disso. Preciso ser o pior possível, assim o caís será demolido e os barcos libertos. Mas num deles vai o demônio. Saberei a hora de pular no mar. Perderei meu amigo de desertos. Beck, estarei sempre junto de você. Amamos a mesma garota, e você é meu amigo. Então vamos dividi-la! Metade dos sonhos delas serão meus, a outra metade é sua. Sim, mas teremos que dividir as paranoias que ela carrega. Isso é um fardo, Beck, isso é um fardo! É, e ela nem sabe quem é de fato? Nós também não sabemos quem somos! Então podemos partir em paz? Já.
Beck, tudo passa? Não, tudo fica sem sentido. O que é o mesmo que se transformar em pó. Não pense no tempo, a menina de cabelos claros no balanço é a morte, se lembra? Então vamos pela estrada. A manhã vem vindo, aquela é a última estrela da noite. É assim a nossa vida humana, se apaga de repente com tanta luz. Quem você gostaria de encontrar além daquela curva, se o tempo lhe desse uma chance? Alguém que eu não conheço. Parece cansado. Sim, cansado de tanto conhecer. 
Pega meu camelo, vai bicho, te vejo na próxima canção. Beck, ninguém mais chama ninguém de bicho! Força do hábito. O que faremos amanhã? Tomaremos café com Buda. Mas eu ando pensando em me converter ao judaísmo. Qual o problema em apresentar Buda a Singer? Nenhum. Façamos então à luz da manhã, o que se de melhor pode-se fazer, apresentar pessoas. Good nigth, Beck. Na boa, amanhã nos vemos. Ei, leve seu isqueiro. Mazel Tov. Pra você também, Mazel Cóf.