sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track I

Eu me sentia bem comigo mesmo, apesar de tudo, quando completei 10 anos. Já tinha sentido a primeira invasão da sociedade em minha vida, apesar de não ter, à época, noção alguma disso. – É fato que a família começa bem antes com a mesma metodologia. Bem, tudo começou quando ia completar 7 anos e me disseram que eu teria que ir para a escola. Então perdi uma parte do dia, as tardes, que até então eram eternidades livres. Elas não seriam mais minhas. Foi uma longa pena de 4 anos e cumprida com certa resignação ao longo do curso primário. Quando completei então os 10 anos, ao contrário, não estava livre, tinha mais pena a cumprir, só que agora no ginásio, mais 4 anos. 
Com 11 anos, obrigatoriamente, toda criança deveria ir para o ginásio, hoje chamado de ensino fundamental. Trocaram meu uniforme e me disseram que agora meu horário de estudo seria na parte da manhã. Era cruel. Levantar quase que na mesma hora que o sol, que para os gregos antigos era um deus. Um deus é poderoso, um menino, não. Me sentia preso e exilado da frugalidade das horas, do possibilidade de poder ficar comigo mesmo pela manhã, em profunda paixão com o ato de não fazer coisa alguma.
Preciso retornar um pouco no tempo e dizer que tinha um avesso natural aos compromissos. Os pais, de um modo geral, nunca entendem isso porque buscam nos filhos o certificado da normalidade que os olhares alheios vão atestar em nós. Se disserem que somos normais, tudo estará certo sob o céu. O contrário é sinônimo de trágico, caótico. Dessa forma, quando ainda era um pós-bebê, uns 4 anos, quero dizer, e era retirado de meus brinquedos para participar de algum compromisso, sentia uma aflição profunda. Um exemplo: eu chorava na igreja, nos braços de meu pai. Não entendia por que tinha que frequentar um lugar tão chato. – Até hoje não entendi.
Mas a sociedade vai nos torturando lentamente através de nossos pais e quando damos conta, já estamos acostumados a participar de compromissos sociais desnecessários, vazios e insípidos. E foi assim que iniciei o ginásio, sem a minha opinião prévia sobre o fato, sobre o desenrolar da ação em si mesma, o qual eu era protagonista.
No meio do curso do ginásio eu ainda era avesso ao que se ensinava na escola. Tanta vida fora da sala e eu ali, em meio a uma organização semi-militarizada, uniformizada, com pessoas de discursos intransigentes, especialistas em dizer ‘não!’. Hoje entendo que o mundo é construído em cima da destruição de nossos desejos lúdicos. A vida é só um mergulho dos anjos decaídos na condição animal terrestre. Mas eu fui salvo, pelo menos parcialmente, pela música. Já que estava na chuva, molhar-se poderia ser divertido. Conheci colegas que falavam de uma música diferente da que eu ouvia em casa. Depois de tantas histórias acabei procurando no rádio.
Era o ano de 1979. A música mais tocada era de um grupo chamado Queen. Chamava-se, Love of my life. Uma execução ao vivo, somente uma voz e um violão. Minha vida então começou a mudar. Aquela voz vinha de um outro mundo, o violão era perfeito, o publico cantando era de dar arrepios. O resultado: pedi de aniversário um disco da banda. Ele chegou embrulhado com papel de presente das ‘Lojas Diniz’. Abri a tampa do aparelho de som, um Grunding, que era fabricado em Cruzeiro, veja só, e coloquei na pick-up um LP chamado, A nigth at the opera, gravado em 1975.  – Anos mais tarde esse disco Queen seria premiado como a melhor gravação analógica de todos os tempos. Ouço o LP até hoje, seja em vinil, CD, DVD, You Tube.
A primeira coisa que desejei fazer após ouvir esse disco foi montar uma banda e tocar como eles para poder beijar as garotas do mundo. Meus sonhos eram simples. Um disco fez por mim mais que todo o sistema educacional brasileiro, em tempos de ditadura. Mas ainda tinha muita coisa por vir, muita música a ser descoberta. Um dia me disseram, “Já ouviu uma música chamada stairway to heaven, do Led Zeppelin?”. Bem, isso merece outro texto.   
    Meus primeiros beijos em minha namorada foram embalados pelos acordes de love of my life; no outro vídeo, Breakthru, uma música de 1987. Detalhe: uma banda nunca pode deixar de ser adolescente. Mesmo que você tenha o vírus da AIDS no corpo, a vida continua e você deve querer gravar um clip sobre um trem, assim, numa bela manhã, enquanto as outras pessoas trabalham.  
    
    

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