segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track II



Não me lembro direito o nome dele, acho que era Alírio, ou Alípio, não sei ao certo. Era um sacristão. Ele aparecia na rua de minha casa em meio as brincadeiras de pique-esconde, ou de um jogo emocionante de bola. Ficava sentado num canto e quando a gente parava, ele se aproximava e começava a falar. Uns diziam que ele era louco. Mas é fato que contava histórias de uma maneira bem interessante. Um dia nos sentamos na beira da calçada e ele desfiou um rosário de histórias. Todas bíblicas. Sem saber, eu fora apresentado à mitologia judaica por ele.
Ele fazia as vozes dos personagens, inseria pausas, sabia se aproveitar do suspense e sempre que acabava uma delas, vinha com um discurso pedagógico sobre como era perigoso se afastar de Deus. Seu acervo de causos era sobre o Antigo Testamento. Foi através dele que vim a fazer primeira comunhão. Essa era sua missão, só depois descobri. Ele saia a esmo pelas ruas e quando encontrava uma molecada em paganismo profundo, se aproximava, fazia a amizade, contava suas histórias, mostrava o quanto era perigoso o inferno e, depois que percebia que molecada havia mordido a isca, oferecia um curso de catequese para que todos pudessem ser inseridos na casa de Deus. Repetia que só ia ao Pai quem seguisse os passos do Cristo.
Acabei fazendo o curso e a própria primeira comunhão. Confessei, como pecado capital, que havia roubado de um colega da rua, bem mais novo do que eu, uma chapinha de refrigerante com a figura do Senhor Smith, nº 36, assistente do Capitão Gancho, da coleção dos personagens Disney nas tampinhas de coca-cola.  
A missa em que fui ungido com o sinal da cruz, através do pão, foi singela. Usei uma calça verde e uma camisa branca de mangas compridas. Os cabelos devidamente penteados como se a vaca os tivesse lambido com toda sua eficiência; nos pés o meu glorioso ‘quixute’, um tênis preto que imitava uma chuteira de futebol. Esquisito, mas fora através da conversa com um estranho que adentrei na Igreja. À época, meus pais, acho, vivam uma crise espiritual que oscilava entre o catolicismo e uma série de vertentes do espiritismo. Talvez por isso não disseram nada sobre minha escolha.
Findada a missa, fomos pra casa de minha avó, uma central Católica miniera em pleno território do Vale do Paraíba. Serviu-se café com bolinhos e alguns tios, irmãos de minha mãe, estavam presentes. Um deles resolveu me perguntar o que eu havia sentido na hora em tomei a hóstia. Eu não havia sentido nada de especial. Parecia uma bolacha sem tempero. Mas eu sabia que não poderia dizer isso, então menti. Disse que tinha sentido uma sensação de leveza, de purificação. Ele balançou afirmativamente a cabeça e disse que eu fora bem preparado.
Nunca mais o vi o contador de história bíblicas. Após cumprir sua missão, sumiu. Eu voltei para as brincadeiras de rua e o tempo passou. Meus amigos, a maioria deles, era de ‘crentes’, os evangélicos de hoje. Me lembro de como tentei convencer um deles a ir ao cinema para que pudéssemos assistir Guerra nas Estrelas, algo que ele, nem ninguém no mundo, deveria perder. Claro, ele não foi, sua religião não permitia. E por final, eu quase perdi o filme.
Guerra nas Estrelas se trata de uma grande jornada, Joseph Campbell, maior mitólogo do mundo, foi um grande fã de toda a série. Quando chegou minha vez de ir ao cinema, meus pais tinham um casamento par ir. Fui deixado na casa de uma tia, que ficava ainda mais longe do cinema do que minha casa. Mas eu tinha que ir. Fui à sessão das 18hs00, era num sábado. Praticamente cruzei a cidade sozinho; eu tinha 11 anos. Passei por lugares que jamais imaginaria que pudesse estar, e tudo por um filme. 
Diante da tela, fiquei boquiaberto, fora purificado, fora inserido no mundo dos heróis e aquele universo profundo, com suas galáxias, mais poder maquinal de Lord Vader enfrentado pela coragem de Luke Skywalker, deram sentido ao meu espírito. - Luke Andarilho das Estrelas e seus amigos da Resistência, e eu, que num toque de mágica, havia me transformado num deles. Lutaria contra o Império do Mal o resto de minha vida
Claro, o cinema era a uma nova religião e pouca gente se dava conta do fato. E isso foi em 1977. 

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