sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track IV, final cut

O sol estava a pino. Eu estava sentado no topo da escada, de frente pra rua e pro mundo. O carro parou. Meu pai desceu dele com um livro nas mãos. Eu tinha uma prova no outro dia e ainda não tinha começado a ler a história, porque não havia pedido o livro que fora marcado há mais de um mês. O Rei do rio de ouro, era esse o nome.
Comecei a ler ali mesmo. Meu pai o entregou ao passar por mim em passos operários, era um mecânico. Depois eu ouvia o barulho de seus talhares no prato do almoço lá na cozinha, enquanto eu lia os primeiros parágrafos. A história do livro acontecia em lugar nenhum. Um menino que tinha dois irmãos maiores que eram maus. O Rei do rio de ouro era um duende que recebia, ao final da história, um pedaço de carne de um assado que o menino vigiava e não deveria comer. O resto eu não me lembro. Entendi que o menino fora bom ao dar sua parte ao pobre Rei do rio de ouro, mesmo ficando sem nada para comer. Os dois irmãos viraram pedra, e o menino foi premiado ao final.
Não tirei nota boa nessa prova. Senti que meu esforço fora em vão. Um desperdício; eu já estava na 5ª série ginasial. Mas posso dizer que a primeira história que me tocou profundamente foi sobre a floresta do sono, num livro de português que eu usara na 3ª série do primário. Havia um desenho de um rio cercado de árvores e os animais dormiam às margens e nos galhos. Ainda me lembro da figura do hipopótamo, com seus olhos fechados, e com a metade do corpo pra fora d’água. Todo animal que por ali chegava, adormecia. Eu adorava o enredo.   
Depois eu fui ler Os patins de prata, uma história holandesa onde um pai criava, com dificuldades, um casal de filhos, Hannah e Hans, se não me engano, desde a morte da mãe. Era uma família pobre e Hans patinava como um capeta. Ele ainda salvou a cidade de uma inundação, porque havia enfiado o dedo num buraco da parede do dique que circundava a cidade. Passou a noite inteira evitando a tragédia, venceu o frio, o medo e se tornou um exemplo. Depois venceu a competição de patins e levou o prêmio, que eram os patins de prata.
Mais tarde, no meio do ginásio, li um livro que se chamava, Nas terras do rei café. Uma viagem a um mundo paralelo que depois, ao final, era definida apenas como um sonho. Gostei muito desse livro, talvez pela fuga, pela aventura a um universo perdido em meio a uma mata. Com certeza, o autor, que não me lembro o nome, havia se inspirado em Alice no país das maravilhas, mesclando pitadas de Monteiro Lobato. – Do bom e velho Lobato gostei de ler O saci, onde perdi o medo do escuro.
Alabardas, Alabardas! O último livro que ainda não li, é um texto inacabado do mestre Saramago. Comprei o livro esses dias, tem a frase parada no tempo, incompleta, no alto de uma página, a última que ele escreveu. Depois, imagino, sua vida foi uma sequência de fatos que ocorreram em horas, talvez num ou dois dias e a morte veio lhe tocar nos ombros. Então se abriu diante de seus olhos os portais da floresta do sono. Tornou-se uma pedra, pra sempre, no próprio quintal, em sua terra natal do exílio, a própria literatura portuguesa plantada num solo vulcânico.
Alabardas, Alabardas! Nas terras do rei do café.


                  

Um comentário: