O Eu aspira comunicar-se com outro Eu, com alguém igualmente livre, com uma consciência similar à sua. Só dessa forma pode escapar da solidão e da loucura. (Ernesto Sábato)
Tudo no universo está conectado. Tudo é unido numa teia infinita. Sabemos que através de nosso raciocínio cartesiano não
conseguiremos, jamais, desvendar tal emaranhado. Talvez como muita intuição, muito
improviso e com a percepção fora da gravidade racional, tal como um Xamã, talvez, então, entendamos o universo ou possivelmente atinaremos em algo que se aproxime disso. E é daí, justamente daí, que
deixaremos de ser humanos. Quando conseguirmos sentir o universo como numa teia
quântica, a unidade que nos deu o impulso para tal compreensão já não existirá
mais, ou seja: a nossa razão. Não podemos entender o universo, só podemos
senti-lo e 'nada mais'. - Tente explicar isso para Bolsonaros, Malafaias, Padres Jonas e coxinhas mais. Verás então que um rumunante é extremamente fiel às suas quatro patas, porque a Terra é plana.
Mas enfim, podemos concluir com essa ladainha toda que, toda
ação tem uma reação porque tudo está interligado. Não há individualidades no
universo, o oposto, é nossa maior ilusão. Sim, o ato jogar uma pedra num lago pode iniciar o
vôo de algum meteoro que irá destruir a terra daqui a três milhões anos. Por
isso, pense bem antes de agir, pois há conseqüências adormecidas no tempo da
inexistência. Eu acredito piamente que há um enredo dos não acontecimentos
paralelos à nossa volta.
Temos o livre arbítrio, o que significa fazer uma
escolha a toda hora, abandonando uma série infinita de outras escolhas. Cada
escolha significa a exclusão de milhões de possibilidades daquilo que poderia
ter existido. É só pensar numa não história constante, paralela a essa que
chamamos de realidade, que na verdade, não é realidade alguma, somente o
universo num de seus próprios fiapos da teia insondável que...
...a explicação pode ir longe, não sei se é legal
começar um conto com uma digressão tão absurda. Mas quem pode negar uma série
de ações e suas conseqüências insondáveis? Há quem diga que a impotência de
Hitler matou seis milhões de judeus; que se Eistein soubesse de Hiroshima e
Naghazaki, não mostraria a língua naquela famosa foto E=MC2; que se os Ascetas
soubessem dos espanhóis, queimariam os próprios “livros” religiosos; se
argentinos soubessem das histórias das copas, usariam amarelo na camisa e
etc..
Bem a história que quero contar se passou no 'fundo' do Vale do Paraíba, numa das cidades mortas de Monteiro Lobato, um acontecido
que comporva a existência da teia quântica. Um menino, dez anos, caminhava com
a mãe numa ensolarada manhã de uma segunda-feira inevitável. Tudo corria bem
até que seu amigo, no alto do barranco da escola, chamou por seu nome. O menino
e mãe olharam e acenaram para o amiguinho e continuaram a caminhada. Mas de novo o
menino chamou e de novo a dupla olhou. Dessa vez o menino segurava o pênis com
a mão esquerda e revelava sua individualidade para quem quisesse ver. A mãe
tapou os olhos, não queria ver aquele mostrengo. O filho, ofendido e cuspia
palavrões. Que tempos eram aqueles que meninos sobre barrancos de escolas
mostravam o pau às mães dos colegas? E se a onda pegasse?
—...filho da puta, cê vai ver só!!
De posse de um bom pedaço de pedra, nosso ofendido
herói lançou o petardo em direção ao satírico que desnudava o próprio objeto
fálico em nome da bazófia. Em momentos de desequilíbrio a mira não é boa. A
pedra foi em direção a uma professora que num voeirismo exaltado, deliciava-se
com o nudismo, com a indignação maternal e finalmente, com a revolta
adolescente. O resultado de tal observação dotou a professora de uma agilidade
Romário. Ela curvou as costas e a bomba passou raspando, tal como na copa de
94, contra a Holanda. Brasil 3 a
2.
Já o carro do professor de educação física, que
nada tinha com o enredo, levou o chumbo que havia passado pela professora
Romário. O carro do proletário fora amassado por um filho que defendia a honra
da mãe, contra a exposição despudorada do pau do coleginha de sala em plena luminosidade solar de um dia útil. O resto da história é uma somatória de bate-boca. Era o pau, era a
pedra, a mãe, o carro, o pai pagando a conta. Um plágio sobre a obra magnânima
de Tom Jobim, que segundo dizem, é um plágio de uma outra obra, que por sua
vez, está na teia quântica. Um seja, um rolo só!
Quando o franco atirador foi interrogado,
defendeu-se dizendo:
—...ele queria comer a mãe!!
Ninguém come a mãe do outro assim, sem nenhuma
represália. A sociedade ocidental dava às mães um valor incalculável. A mãe de
Cristo, por exemplo, subiu aos céus; a mãe de Garrincha ganhou estátua no
Botafogo; que seria de nós sem a mãe do Pelé? Enfim, não se mostra o pau assim,
de uma maneira sacana à mãe de ninguém. O que o professor proletário não conseguiu
explicar a esposa, foi a lógica da equação quântica: pau + mãe + filho + pedra
= carro amassado.
—..cê táva na farra, né seu safado!?
Nem a física quântica explica as variações de tempo
nas mulheres. Depois de tanta confusão, só restou a ele, o suicídio. É
preferível morrer que viver num mundo assim. Certo?
Mas antes de apertar o gatilho que o mandaria para
o insondável mundo da morte, o telefone tocou. Era seu pai, que lhe pedia
auxílio.
— Filho, vou ao supermercado. Você pode me buscar daqui
a pouco?
Acanhado
como um pássaro cansado da chuva, ele apalpava a solidão de sua casa e olhava
as paredes com seus quadros, posters e manchas que pareciam sinais dos céus,
porém indecifráveis. Caminhava da cozinha desorganizada para a sala em igual tom.
O banheiro exalava um aroma de ácido úrico, o qual nem sentia mais.
Normalmente, às sete e trinta, abria a
porta da frente e se encaminhava para o ponto de ônibus e sacudia por vinte
minutos até que chegasse ao escritório de advocacia onde era um auxiliar
competente e calado. Fazia o serviço de forma mecânica e por isso dedicava a
maior parte de seu tempo a ouvir a conversa dos bens sucedidos que capitaneavam
a agência.
Admirava a agilidade dos jovens advogados. Costumava
observar a pele escanhoada, o corte dos cabelos, as expressões das faces em
diálogos telefônicos. Era como se observasse da Terra, os deuses no Olimpo. Mas
não queria ser um Deus, apesar de sentir-se inferior. Às vezes, na hora do
cafezinho, ganhava um sorriso, tapa nas costas, recebia um gesto que afirmava
nas entrelinhas que ele até fazia parte daquele grupo de destemidos, que ganhavam
dinheiro com lábia e astúcia. Atributos que ele não tinha e desejava
secretamente obter de uma forma mágica, para que todos pudessem olhar para ele
com espanto. O maioral, o talento que dispensava apresentações.
Atendia às vezes o telefone e sentia
ainda mais a inferioridade quando a voz era feminina e não tinha o tom de uma
cliente, mas sim o de um programa marcado por algum dos caras. Quando passava o
fone ao vencedor, dilacerava-lhe aquele olhar de satisfação de quem é procurado
por uma fêmea. Tornava-se um invejoso, um homem capaz de matar alguém, pois
ainda não conhecia essa felicidade e por isso ninguém poderia conhecer. Quando
percebia que tal sentimento havia lhe tomado conta, resguardava-se em suas
ilusões e transportava-se para a infância, um tempo onde não havia e namoradas,
somente amigas, colegas correndo no pátio, ao vento, olhando o mar imaginário,
onde capitão Nemo mergulhava fundo o Nautilus, fugindo da imbecilidade humana.
Teria ele se transformado num Nemo?
Sempre voltava para casa com um saco
de pão nas mãos. Levava sempre dois. Talvez uma mensagem subliminar que enviava
a si mesmo, todos os dias, tal como num mantra. Sonhava que um dia lhe abririam
a porta, que um sorriso junto a cabelos dançando na brisa lhe tocariam o rosto
cansado de tanto trabalho mecânico e uma mesa com velas sustentaria um jantar
leve, banhado a vinho branco da Argentina. Não sabia o porquê de um vinho argentino
estar em seus sonhos. Muita coisa no mundo não fazia sentido. Se deixassem de
existir uma série de coisas, continuaria a viver na mesma solidão.
Nem sempre comia os pães que trazia.
Ficavam para o outro dia, para o café da manhã. Em casa, em pleno horário
nobre, ligava a TV e tentava entender o noticiário que, cada vez mais, parecia
longe dele, sem nenhum significado. Então começava a olhar para a
apresentadora, para sua boca, seu cabelo, sua maquiagem e sonhava alto. Ligava
o som, sempre o mesmo conjunto português, os fados modernos, aquela voz fina de
sereia cortava-lhe a alma e então chorava. A luz azulada da TV dava as suas
lágrimas um tom ainda mais melancólico. Era um oceano que saía dele e de tão
profundo, tirava-lhe o leme da mente e um mergulho na areia do tempo era
inevitável. Lá estava ela, sua mãe, em ilusão, com braços abertos, no meio da
névoa dos sonhos, chamando-lhe para o seio. Uma vergonha cobria-lhe o frio dos
ossos com um frio ainda maior. Com a força dos espíritos dos tempos inacabados,
transfigurava a imagem de sua mãe na Vênus de Milo. Era uma ação alquímica que
aprendera e que lhe servia. Assim, no meio da noite, dançava fados com a Vênus
de Milo roçando-lhe o objeto fálico. Tudo ao sabor do oceano insondável de
Nemo.
Às três da manhã a crueldade sempre
desfazia suas névoas de proteção. O gosto mofado da realidade trazia a insônia
e mostrava a TV ligada, exibindo pela milionésima vez o mesmo desenho sem
graça. “Abram as portas, a depressão chegou, inevitavelmente!” Pensava consigo
mesmo, numa conversa que já não queria manter mais. Talvez esse fosse o diálogo
mais monótono de toda sua vida. A conversa que tinha com ele mesmo.
Já o sol não se importa com os
diálogos humanos, sejam eles concretos ou imaginários. Apenas ele faz seu
trajeto fixo no céu e clareia o dia. E tudo retorna com seu gosto árido de
mesmice. Não resta outra coisa senão abrir a porta no mesmo horário de sempre e
começar mais um dia. Há tanto castigo no caminho para o trabalho. Como somos
tristes quando fazemos da infelicidade nosso ganha pão.
Abriu a porta de vidro do escritório e
se dirigiu para sua mesa. Sem se importar se havia mais alguém no local,
deixou-se levar pela solidão dos carimbos em suas danças imóveis no suporte
manchado de tinta azul marinho, pelo vidro embaçado que cobria a mesa, pelos
recortes de jornais que descansavam sobre o feltro visível, tal como quadros
numa galeria de um homem só, e que já não significavam mais nada. Olhava a
marca de seus cotovelos e o desgaste da maçaneta da gaveta que abrigava uma
desordem importante. Nada poderia ser jogado fora. Não queria naquele dia a
faxina especial. Aquilo poderia esperar. Levantou os olhos e viu dois dos
grandes mocinhos passando diante de sua mesa. Era como se ele não existisse,
como se assistisse a uma peça de teatro da coxia, quase adivinhando os
diálogos. Não que fossem escritos por ele, mas haviam sido escritos para que o
machucassem fundo em suas mágoas. Feitos para ampliar sua solidão, torná-la
algo que ultrapassasse as fronteiras da tolerância. Então desaguava a acidez da
inveja, da raiva e da fúria. Porém, silenciosos eram seus espinhos. Seu peito
tornava-se um vácuo, um abismo negro e as palavras ouvidas, mostravam o quanto
era infeliz.
“... cara, você nem imagina como ela
beija bem!!”.
“É!”
“Vou sair com ela outra vez!”.
“Então vai virar namoro!”.
“Acho que vai”.
“Será que ela está pensando da mesma
maneira?”.
“Não estou preocupado com isso. Apenas
a quero”.
“Olha lá, a reunião vai começar.
Vamos?”.
Sozinho outra vez, pensou com medo,
não querendo pensar se um dia, talvez, viesse a viver tal diálogo. Se um dia
beijaria uma mulher de sorriso largo, uma bailarina dançando nas nuvens da
primavera, em seus braços, como num postal de uma cidade qualquer da Hungria.
Pela janela soprava um vento frio e tamanha
era a solidão, que o mundo num silêncio estabeleceu um gesto de solidariedade para
com aquele homem. A nau em que viajava conheceu a afiada navalha dos arrecifes
da não paixão, do não amor, do sonho que apodrece na saliva sobre a língua que
não pronuncia a palavra sagrada e que não toca outros lábios. Era a morte bem
aceita naquele momento em que todos se levantavam para o cafezinho e as conversas
banais faziam da vida algo suportável. Um guarda-chuva em dia de tempestade.
Ele era apenas uma calmaria do inferno, preso e ancorado diante da imensidão.
Imobilizado pelo acanhamento, não conseguia dizer “Olá!”, para que entendessem
que estava vivo.
Abriu um envelope do correio, mais uma
propaganda, mais um catálogo em sua vida e começou a folhear sem interesse.
Apenas como quem o faz para matar o tempo. E assim viu sua primeira
companheira, em plástico, com preço estampada embaixo, feita para ser paga em prestações. A
solução de seus problemas, de sua angustiada e solitária vida. Não precisaria
usar as palavras para conquistá-la, apenas rendimentos.
Sentiu vergonha, achou que todo o
mundo olhava para a mesma revista. Sabia que não era um gesto comum, ou menos
ainda saudável. Comprar uma mulher de plástico era a maior prova de que era um
homem solitário e como tal, necessitava de ajuda. Fechou a revista e resolveu
esquecer a idéia e terminou o expediente da mesma maneira inócua que havia
começado. E foi em meio a garoa da tarde com a mulher de plástico na cabeça.
Fechou a porta da sala com a roupa úmida e foi para seu chuveiro. Fez um
lanche, que substituiu o jantar, como sempre, e sentou diante de seu oráculo
moderno e começou a passar os canais, como se isso melhorasse a TV. Então viu
um homem sendo entrevistado num talk show e a seu lado uma mulher de
polietileno. Ele dizia que não havia nada de errado com um homem querer viver
com uma boneca, por sinal, poderia ser muito saudável. Meio terapeuta, meio
marqueteiro, meio cientificista, e também na moda, passava ao telespectador uma
confiança. “Comprem em paz, não há erro nisso!”.
Noutro dia fez a ligação. Fez o pedido
por um orelhão que ficava à frente do prédio em que trabalhava. Deu endereço,
escolheu a melhor maneira de pagar e recebeu uma estimativa de quando a boneca
chegaria. Sentiu um frio na barriga, como se o mundo o olhasse por um único
olho e ele nu, com toda sua vulnerabilidade exposta e banhada de sol. Desejava
uma caverna para se esconder. Seu acanhamento quase o impediu de atravessar a
rua, quase não conseguiu desligar o telefone. O barulho dos automóveis vibrava
dentro de suas vísceras. Nunca mais ele seria o mesmo. Suava frio pela nuca e
suas mãos tiveram de ser lavadas com muita pertinência no lavabo. Foi o dia
mais longo, a semana mais densa, o tempo mais pegajoso que viveu. Mas enfim
chegou o sábado e lá pelas dez da manhã o carro do correio parou à porta de sua
casa. Dois Homens carregavam um caixa em direção a sua porta e tocaram a
campainha. Pronto, sua esposa havia chegado.
Assinou os papéis necessários e fechou
a porta às costas dos dois carteiros. Em pé, na sala, diante da caixa fechada,
sentiu medo de abrir o lacre. Só conseguiu porque leu um aviso de que a boneca
vinha vestida, para maior segurança dos consumidores. Presentes como estes
podem ser abertos em repartições públicas, em dias de festa, em comemorações de
amigos invisíveis. Pensando nisso, a empresa mandava sempre a boneca em trajes
esportivos. Ela usava uma calça azul e uma blusa amarela; tinha um sorriso
claro e os olhos da cor do céu. Seus cabelos acastanhados eram belos e os seios
na casa da perfeição. Ele tremeu quando a viu sentada no sofá, com uma
flexibilidade de dar inveja. Sentou-se diante dela e começou a procurar as
primeiras palavras. Precisava iniciar o contato. A primeira impressão é a que
mais vale.
Olhou a bagunça à sua volta e começou
a arrumar as coisas, se desculpando por não ser uma pessoa cuidadosa. Disse que
vivera toda sua vida longe das mulheres. Sua mais remota lembrança vinha de sua
mãe que lhe cobrava o quarto arrumado, o cabelo penteado, os dentes escovados e
os sapatos brilhando. Quando não cumpria o mínimo, recebia sanções.
Quanto à comida, sentiu-se
envergonhado, nada era natural. Era um festival de enlatados e comidas
aromatizadas artificialmente. Começou a fechar os armários. Queria esconder o
que podia. Bebidas ele não tinha, o que poderia mostrar um ar de infantilidade.
Não seria possível tentar mostrar um perfil de atleta abstêmio, ele não tinha
cara de fisiculturista.
Voltou da cozinha e se deparou com o
olhar profundamente azul pairando no ar. Parecia que fitava sua roupa. Então
correu para o quarto e foi vestir-se de outra maneira. Quando pegou a camiseta
sentiu o próprio cheiro, ainda não havia tomado banho. Precisava impressionar
desde o primeiro momento; foi para o chuveiro.
Foi rápido, muito rápido. Não queria
passar a idéia de que desperdiçava energia. Uma ansiedade extrema cobria-lhe o
peito, ele precisava enfrentar sua mulher e rápido. Olhou nos olhos arregalados
e sentiu que ela observava no mais profundo de seu ser. Não havia palavras em
sua boca, não havia o que dizer. Sentou-se ao lado dela e ficou procurando um
assunto qualquer, que pusesse fim a aquele momento que parecia eterno.
Nenhuma brisa entrava pela janela,
nenhum movimento aparente ocorria naquele momento. Passou por sua cabeça que
talvez fosse ele também um boneco de plástico. Não tinha história, não tinha
lembranças e era triste. Discordava dos conceitos orientais dos opostos em que
se dizia que ao se entender o que é feio, se entende o belo e vive-versa. Conhecia
uma tristeza profunda sem jamais ter conhecido a felicidade. Quem nunca foi
feliz, não sabe o que é a tristeza. É isso que dizem os monges, mas no caso
dele, não fora assim por toda visa. Assim, mais clara se tornava a ideia de era
um boneco. Ficou imóvel. Deixou o tempo passar. Pensou em não pensar no tempo e
talvez, quem sabe, o tempo deixasse de passar e arrastar consigo tudo aquilo
que tem vida para o buraco da decadência. Não pensou em nenhuma prece. Mas o
silencio de sua mulher o incomodou. Não era possível permanecer muito tempo
perto de alguém que abraça o silêncio tal como um barco e sai pelo oceano da
alma humana sem saber por onde vai.
Não poderia continuar com aquele
relacionamento, não seria saudável, não seria normal para ele. Talvez fosse um
homem que nascera destinado a morrer solitariamente dentro de um mosteiro,
rezando a Deus, pedindo perdão por todos os seus pecados não cometidos. Para se
salvar, precisava abrir mão de tudo que o cercava. Ninguém sai de um casamento
levando coisas. Desde que ela entrara em sua vida, carregada pelos homens do
correio, sua vida havia mudado. Não queria a mudança, nem sua antiga vida. Tudo
poderia cair, explodir, virar pó, tal como as duas torres gêmeas que caíram
infinitamente no noticiário. Será que aquilo foi verdade mesmo? Será que ela iria
aceitar uma separação amigável? Fora um erro, ele só queria uma aventura, e nada
mais. Mas filhos de polietileno não ficam doentes, havia afinal, algum lucro
naquilo tudo. Mas porém, se num futuro distante, os filhos, num inverso de
Saturno, resolvessem comer a carne do pai, o que ele faria? Estamos sempre
comendo o pai e ejaculando na mão terra. Eis o fardo da carne que ostenta
sangue, carbono, hélio, nitrogênio e sais minerais. Realmente ele odiava aquela
mulher. Melhor partir, tal como nos filmes, como nos livros. Ninguém poderia
ser feliz naquele mundo de ofícios, infinitos relatórios, guias de saúde
privatizada e faturas de cartões de créditos. O único encantamento possível era
o de sair do sistema que o oprimia, que vinha através daqueles olhos grandes de
plástico, receptáculo de esperma e desejos estimulados pela propaganda de
roupas íntimas.
Olhou fundo naqueles olhos e sentiu
toda raiva do mundo, mas não tentou nenhuma agressão, afinal já existiam delegacias
especializadas em apurar violências domésticas. Melhor sair sem dizer adeus. E
o fez, mas antes pegou o disco de um cantor desconhecido; era a única coisa que
desejava levar, como lembrança da primeira parte de sua vida. Saiu olhando o
céu na esperança de encontrar sua caravana de camelos em busca de um deserto
marrom, onde o vento fazia o sol oscilar ao fim da tarde, anunciando que a fria
noite estrelada estava para chegar. Então, sob a tenda de pele, seria possível
dormir como se mais nada restasse a se fazer.
Homenagem ao bom e velho Tom Vital, o rei do uivo digital.
Em março mudei de casa. Agora comecei a colocar as coisas em dia, mas a primeira caixa de livros que abri, tava lá a cara do Tom Vital, língua de fora, um rolling stone pronto pra receber a hóstia. Memórias de um Galo Doido, sempre retorno ao seu livro, denso como conhaque e barroco na essência: claro e escuro, leve e pesado, denso e líquido. Vlw, Tom.
Mas sempre pensei comigo como seria a vida de um Atleticano, bom boêmio, se um dia esbarrasse numa cruzeirense? Com uma 'bambina', como seria? Bem, a canção explica.
Pode
até parecer repetitivo voltar a esse assunto, mas no outono me sinto
melancolicamente-otimista. Não sei explicar. Saio de carro e vejo as
tonalidades da luz, o asfalto, o verde do pasto, o azul vivo e puro. E acho que
é assim que passo a me perceber como um ser vivente. É palpável a beleza da
condição humana na luminosidade do outono. Parece que caminho pela Califórnia,
pelo litoral do Mediterrâneo, vejo o mar da Grécia, − ‘ah! O mar da Grécia!’, −
e por qualquer lugar que eu vá.
Enquanto
a cerveja descia gelada pela garganta e a paisagem zunia ao meu lado, num belo
passeio de sábado, com o som do carro cuspindo Miles Davis, − sei que o jazz é
o próprio outono – me lembrei da China confucionista-zen-budista. Qual a
relação? Não sei. Acho que nem nunca saberei. Mas não nego o que surge no cérebro
de maneira despudorada, com a benção do coração, numa imagem livre até mesmo de
meu comando neurológico. Quando o cérebro começa a funcionar sozinho, estamos
diante não só é um sinal de liberdade, mas também das portas da loucura, a mais
doce loucura que nos adota como hospedeiro.
Mas
afinal, por que a China, enquanto ouvia Miles Davis numa bela manhã de outono? É
que na China antiga o homem e a natureza andavam próximos, entrelaçados, o
tempo consistia no que a natureza dizia e transformava. Dessa forma, no inverno,
as pessoas se guardavam, ficavam olhando o mundo por detrás das janelas, pelas
frestas. Passavam a maior parte do tempo sob as cobertas, sorrindo, acariciando-se;
quando estavam fora da cama, permaneciam próximos da lareira contando histórias
e tomando caldos. Havia lenha e comida guardadas o suficiente na dispensa para
suportar o inverno; os chineses entendiam que assim deveria ser a vida, porque
viam que pássaros, insetos e outros animais se escondiam no durante o inverno e
esperavam o retorno da primavera para habitar o mundo externo.
Diante
do vislumbre desse modelo de vida milenar e abandonado, atinei que o calendário
que usamos, o tal calendário gregoriano, é um programa de desconexão entre nós
e a natureza. – Claro, a Igreja Católica sobrepôs às datas de festas pagãs
europeias suas próprias comemorações. Depois disso foi o mercado de consumo
quem agiu sorrateiramente. Do carnaval ao natal, passando pelo dia das mães e
dos pais, nossas ‘datas comemorativas’ nos impedem, simplesmente, que haja uma
comunhão entre nosso interior humano e o esplendor da natureza. Deixamos de ser
uma caixa de ressonância que se sente viva ao receber as frequências do mundo. O
diapasão do mundo é de 432 Hz, mas já estamos surdos para ele.
Sim,
o calendário desvia nossas atenções sobre o que nos diz a natureza. Ela tenta
transmitir o que emana do universo todo e deveríamos ecoar juntos, numa milagrosa
reverberação. Mas estamos preocupados com a compra de presentes, com a festa
junina que está por vir e no que devemos fazer para continuarmos a viver como
se não houvesse as mudanças das estações, a própria natureza e o próprio corpo
humano.
O melhor
sol para nossos ossos, o melhor azul para nossos olhos, a melhor temperatura
para nossa pele, tudo isso é despudoradamente permitido no outono. Mas pensamos,
ou pensamos que pensamos, que somos seres lineares e não cíclicos. A ilusão de
que estamos num gráfico cartesiano e que vamos avançando além da natureza
porque vivemos como se não houvesse chuva, sol, vento e animais é a apoteose da
auto-ilusão.
Não
sei se há retorno, mas me sinto um Crusoé em meios aos seres planilhas, aos
seres digitais, de cabeça baixa, olhando o ‘mundo que lhes cabe’ numa telinha
do celular. Que será que há de tão importante nessas ondas digitais que superam
o outono, o silêncio, as horas de se ficar à toa esperando as nuvens e seu
bailar?
Pobre
de quem sabe, de quem se sabe nefelibata, corre o risco de se sentir feliz. Melhor
esquecer! Deixa que eu fico guardando e aguardando as estações. Assim seja!