segunda-feira, 29 de junho de 2015

A peça


Uma plateia diante da encenação de uma peça de teatro, durante todo o tempo em que a cultua, absorve, revê e adota novos conceitos que fluem direto do texto para seu cérebro. Claro, a sedução pela estética, a beleza, a emoção e/ou a capacidade de se aproximar da realidade, a ponto do significado das cenas ser intenso e profundo, também são, deveras, essenciais. 
A percepção do senso comum da plateia se apoia no espetáculo que ela observa exposto em primeiro plano. O palco, com a peça em ato, é um ponto distinto do resto do universo. Os bastidores, o lugar onde estão as mãos e as mentes que tramaram e alinharam o enredo, o desenrolar do texto e as partes que lhe dão sustentação e ritmo, formam um reino que se alimenta do idealismo e da metafísica. Sabemos que essas mãos não são visíveis por nossa plateia, mas são imprescindíveis para a existência da peça em si, mas não para a existência da plateia.
Toda a História humana é uma grande peça de teatro, ou um filme, pra quem prefere a modernidade − ou até mesmo a pós-modernidade. Dessa maneira não podemos deixar de pensar que em cada cenário dessa História, ou em seus fragmentos, que são as Instituições, ocorre sempre algo nos bastidores que trama a maneira de como o senso comum deva vir a entender o que 'deseja' o texto, o seu significado e sua propagação, a posteriori, com entusiasmo.
Em termos cotidianos, − que vem do Latim e quer dizer ‘diariamente’ −, nossa sociedade é uma somatória de palcos aparentemente desconexos entre si, mas que estão vivos com suas dinâmicas próprias, seus respectivos textos e rituais específicos. E é dessa forma que não posso deixar de querer perguntar: o que há por de trás de todos esses palcos do quais não podemos escapar? Digo os altares religiosos, as urnas eletrônicas, os Bancos, os partidos políticos, o cinema, a propaganda, o jornalismo, a ciência, os livros didáticos, o olhar dos desconhecidos em movimento pelas cidades e etc.? – Não! A finalidade deste texto não é mais uma tentativa ‘especulatória’ sobre teorias das conspirações que explicariam o arranjo de forças poderosas por de trás de tudo, em micro e macro escala.
Primeiramente, esse pobre cronista perguntaria o que há dentro de cada um de nós para que esses palcos continuem vivos e importantes? Podemos até dizer que são imprescindíveis. Posso até afirmar de maneira convicta que não saberíamos viver sem eles, porque somos nós mesmos dizendo coisas a nós mesmos através da relação bastidores/texto/palco/plateia. Um misto de tragédia, comicidade, falta de opção e da busca pelo poder.
E como não poderia ser de outra maneira, o cérebro é 'naturalmente' obrigado a universalizar, neste nosso texto, a especulação que traz de suas entranhas à superfície do mundo banhada pela luz da razão: seria a História - o nosso conhecimento histórico/cultural - quem formaria o sujeito capaz de olhar para esses palcos e compreender os significados dos textos que fluem deles? Alguém mais cético e niilista poderia dizer que todos esses palcos são os frutos da fragmentação de uma imensa prisão a qual estamos atrelados por grilhões invisíveis. Todos somos Prometeus: entre os deuses e os ignorantes, além de acorrentados e impotentes diante do enredo da Peça escrita por nós mesmos. A solução estaria no mundo dos mortos.
              Mas neste texto não há um desejo mínimo se quer de algo que seja metafísico. Porém não hesitarei sobre a intenção de especular sobre os desejos dos indivíduos em discordância com a edificação de um mundo projetado, dia-a-dia, à base de negações e multiplicado nos diveros palcos de maneira sofisticada. Deveras, aquilo que temos para usufruir/cumprir em nosso benefício, ‘em nossa’ Civilização, é algo que nos torna estranhos a nós mesmos, e muito mais estranhos ainda aos outros que nos são, também, ainda mais estranhos.
O vazio gerado pela negação dos desejos – um critério que escolhemos para construir uma sociedade que nos faria, historicamente, sentir bem como indivíduos − é preenchido por um labirinto de palcos especializados em dar forma a esse Nada edificado por um eterno adiamento da escolha de uma vida essencial, em benefefício dos equívocos existenciais globalizados. Dessa forma, nos resta somente um palhativo: re-fazemo-nos, dia-a-dia, como 'não-seres', através dessas re-ações encenadas diante das exigências desses palcos do Nada e que constituem o que é o Ser de nossa Civilização. Eis uma bela fórmula antropológica: Negação = Vazio + a multiplicação do Nada pelos palcos do cotidiano.
Uma estranha peça, eu sei. Quem a escreveu? Melhor: que tipo de indivíduo é preciso ser produzido em escala industrial para estar apto a esse mundo? Acredito que essa seja a finalidade da tecnologia: criar ferramentas que ‘ampliem’ nossa parca visão sobre nós mesmos. Não vejo outra finalidade nas redes sociais, nos whatSaaps, nos twitters e afins. Eis uma engenharia em 'ato' ‘específico’: trabalhando para afunilar nossa visão sobre o mundo e sobre nós mesmos. Não há espaço nesses aplicativos para que possamos nos conhecer melhor, a não ser que aceitemos pacificamente a redução da condição humana, de nosso ser, à dimensão ‘fast’ e superficial que essas linguagens dão suporte. O Monomito pós moderno reduziu sua busca a um mergulho numa caixa de fósforos e/ou em expressões de textos padrão whatsaap.
Somos bilhões que acreditam que é melhor concluir que há sempre uma conspiração por de trás de tudo que nos cerca, do que encararmo-nos através de conceitos mais profundos. Afinal, um títere maléfico, ou títeres maléficos, seria uma confortável maneira de justificar o fracasso humano e a degradação do mundo. − Um títere maléfico, ou um Deus que escreve certo por linhas tortas seriam apenas os dois lados de uma mesma moeda.  
Ontem me deparei com uma estranha figura no espelho. Um estranho aglomerado de músculos e nervos que não faz a menor ideia do porquê de estar sobre a Terra, nem qual será o fim disso, menos ainda por que tudo começou. Sei apenas que sinto o medo brotando do chão, como se fosse uma névoa invisível que vai tomando a tudo sem piedade. Claro, em algum lugar, alguém formado em alguma ciência irá me dizer que já existem antidepressivos capazes de segurar essa névoa, ou de me fazer enxergá-la como se fosse a luz da manhã de um ‘final feliz’ de um conto de fadas de Hans Christian Andersen.
Não, meu nome não é Kafka! Mas o palco pode ser o da Loucura.                                                   

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