Em
meu caminho acadêmico, nessa minha luta por aprender para depois ensinar conceitos
que vão do inútil ao prático extremo, eu mesmo, por vezes, me deparo com uma
nova visão sobre as coisas que nunca deixei de olhar, mesmo de olhos fechados.
É o que os judeus chamam de hermenêutica: a releitura do mesmo caminho que
trilhamos dia a dia.
Machado
de Assis escreveu um conto chamado, a Missa do Galo, onde o mesmo termina com
uma atmosfera de sensualidade entre uma mulher casada e um jovem rapaz, numa
sala banhada à luz de lamparinas, quase à hora de saírem pra missa em que se
anuncia o nascimento do Salvador. Mas o escritor brasileiro não foi o único que
analisou o catolicismo, há uma infinidade de pensadores e artistas que o
fizeram. Max Weber, sociólogo, mergulhou numa diferença entre católicos e
protestantes e na maneira como dividiram o cristianismo no universo europeu. -
E digo que as duas partes pecaram por excesso de autoritarismo.
Mas
nessa crônica não quero seguir nessa linha, mas sim numa parca revelação que
tive na noite de Natal, enquanto que na tela da TV a mesma Missa do Galo de
Machado de Assis se desenrolava; o Papa Francisco I seguia seus passos pela
nave, o coral de crianças liberava uma voz inocente e cristalina em busca dos ares
puros. As esculturas eram angelicais com suas expressões metafísicas e ainda
havia o silêncio dos fiéis - nem sempre somos fiéis a nós mesmos, mas queremos
ser fiéis a uma força maior. E tudo arrebatado pelo canto gregoriano usado para
a leitura da sagrada escritura, metáforas de primeira grandeza.
E
foi dessa forma que fez-se a luz em minha cabeça. Se o protestantismo é o cristianismo
do empreendedorismo, do trabalho, da integração, da prosperidade, da
cooperação, das interpretações críticas da palavra e da manutenção da moral por
um forte discurso do pastorado, o catolicismo é o cristianismo do pecador,
daquele que busca a pureza, a limpeza da alma ante a deterioração moral em que
a história de cada um de nós mergulha vez ou outra.
Temos
que entender que pelo julgamento da razão não poderemos emergir do pó, do barro
em que nos vemos mergulhados quando agimos sobre o mundo. Surge, com o decorrer
do tempo, uma ânsia pela pureza, pelo ar leve, pelo espírito livre dos pássaros
que alcançam nuvens tão altas quanto o azul do céu. Como conseguimos fazer isso
numa noite de Natal, num templo de pedra, cercados de estranhos?
Só
o fazemos porque nos movemos em direção à pureza através da música das vozes do
coral de crianças, pela simetria das esculturas, pelas cores harmônicas da
pintura, pela idéia de que todos estão ali para se lembrar de um nascimento
numa manjedoura e que isso nos fará melhores; as dúvidas sobre o milagre não
têm importância, a metáfora é verdadeira e seu efeito não menos humano e não
menos real. Todos nós, em silêncio na nave do templo, todos com faces
assimétricas, cheios de equívocos na alma, nos deteriorando ao longo do tempo. É
nesse momento que nos lembramos do quanto ferimos e fomos feridos, de quanto
almejamos uma paz que vai além da nossa história, além das nossas lembranças e
nos deparamos com o resultado daquilo que plantamos e que chega em nossas mãos
diariamente; pedimos, a quem possa, a quem tenha poder, a suspensão do peso que
há no peito.
É
sempre bom lembrar que o catolicismo nasceu dos porões de Roma, em meio a
simplórios que desejavam um caminho que passasse à margem do sadismo daquele
império. Sonhava-se com um mundo puro e infantil, onde a existência do coração,
mais a consciência da existência do coração do outro, - eis a alteridade -,
pudesse ser a base de um novo mundo movido pelo eterno sal da terra. A
simplicidade do amor infantil capaz de entender que, qualquer homem de coração
puro seria como Deus, e que Ele sempre acabaria sacrificado pela força do
pragmatismo que destrói, não só a alma humana, mas também o mundo que nos
alimenta, (vide hoje as crises ambientais), foi a nascente do cristianismo
católico. - Pena, hoje esquecida.
Mas
enfim, eu estava diante de um culto que tem milênios de idade. Apesar de toda
digitalização do mundo, um ritual medieval faz um efeito danado na alma da
gente. Então me lembrei do Eclesiastes, que diz que nada é novo sob o sol e
tudo é vaidade. Mesmo com toda essa parafernália midiática, com todo os
celulares e suas ferramentas de comunicação, ainda lidamos com os mesmos
substantivos abstratos: amor, traição, solidão, agonia, desprezo, avareza,
humilhação, abandono e coisas mais. É esse o segredo de um ritual medieval
ainda fazer sentido. Mudamos o jeito de entender esses substantivos, mas os
efeitos deles sobre nós são sempre os mesmos. Por isso precisamos das alturas,
da pureza, da inocência. Enfim, começar sempre de novo e com várias sementes de
pêssegos na mão.