sábado, 26 de dezembro de 2015

A nascente


Em meu caminho acadêmico, nessa minha luta por aprender para depois ensinar conceitos que vão do inútil ao prático extremo, eu mesmo, por vezes, me deparo com uma nova visão sobre as coisas que nunca deixei de olhar, mesmo de olhos fechados. É o que os judeus chamam de hermenêutica: a releitura do mesmo caminho que trilhamos dia a dia.    
Machado de Assis escreveu um conto chamado, a Missa do Galo, onde o mesmo termina com uma atmosfera de sensualidade entre uma mulher casada e um jovem rapaz, numa sala banhada à luz de lamparinas, quase à hora de saírem pra missa em que se anuncia o nascimento do Salvador. Mas o escritor brasileiro não foi o único que analisou o catolicismo, há uma infinidade de pensadores e artistas que o fizeram. Max Weber, sociólogo, mergulhou numa diferença entre católicos e protestantes e na maneira como dividiram o cristianismo no universo europeu. - E digo que as duas partes pecaram por excesso de autoritarismo.
Mas nessa crônica não quero seguir nessa linha, mas sim numa parca revelação que tive na noite de Natal, enquanto que na tela da TV a mesma Missa do Galo de Machado de Assis se desenrolava; o Papa Francisco I seguia seus passos pela nave, o coral de crianças liberava uma voz inocente e cristalina em busca dos ares puros. As esculturas eram angelicais com suas expressões metafísicas e ainda havia o silêncio dos fiéis - nem sempre somos fiéis a nós mesmos, mas queremos ser fiéis a uma força maior. E tudo arrebatado pelo canto gregoriano usado para a leitura da sagrada escritura, metáforas de primeira grandeza.
E foi dessa forma que fez-se a luz em minha cabeça. Se o protestantismo é o cristianismo do empreendedorismo, do trabalho, da integração, da prosperidade, da cooperação, das interpretações críticas da palavra e da manutenção da moral por um forte discurso do pastorado, o catolicismo é o cristianismo do pecador, daquele que busca a pureza, a limpeza da alma ante a deterioração moral em que a história de cada um de nós mergulha vez ou outra.
Temos que entender que pelo julgamento da razão não poderemos emergir do pó, do barro em que nos vemos mergulhados quando agimos sobre o mundo. Surge, com o decorrer do tempo, uma ânsia pela pureza, pelo ar leve, pelo espírito livre dos pássaros que alcançam nuvens tão altas quanto o azul do céu. Como conseguimos fazer isso numa noite de Natal, num templo de pedra, cercados de estranhos?
Só o fazemos porque nos movemos em direção à pureza através da música das vozes do coral de crianças, pela simetria das esculturas, pelas cores harmônicas da pintura, pela idéia de que todos estão ali para se lembrar de um nascimento numa manjedoura e que isso nos fará melhores; as dúvidas sobre o milagre não têm importância, a metáfora é verdadeira e seu efeito não menos humano e não menos real. Todos nós, em silêncio na nave do templo, todos com faces assimétricas, cheios de equívocos na alma, nos deteriorando ao longo do tempo. É nesse momento que nos lembramos do quanto ferimos e fomos feridos, de quanto almejamos uma paz que vai além da nossa história, além das nossas lembranças e nos deparamos com o resultado daquilo que plantamos e que chega em nossas mãos diariamente; pedimos, a quem possa, a quem tenha poder, a suspensão do peso que há no peito.
É sempre bom lembrar que o catolicismo nasceu dos porões de Roma, em meio a simplórios que desejavam um caminho que passasse à margem do sadismo daquele império. Sonhava-se com um mundo puro e infantil, onde a existência do coração, mais a consciência da existência do coração do outro, - eis a alteridade -, pudesse ser a base de um novo mundo movido pelo eterno sal da terra. A simplicidade do amor infantil capaz de entender que, qualquer homem de coração puro seria como Deus, e que Ele sempre acabaria sacrificado pela força do pragmatismo que destrói, não só a alma humana, mas também o mundo que nos alimenta, (vide hoje as crises ambientais), foi a nascente do cristianismo católico. - Pena, hoje esquecida.
Mas enfim, eu estava diante de um culto que tem milênios de idade. Apesar de toda digitalização do mundo, um ritual medieval faz um efeito danado na alma da gente. Então me lembrei do Eclesiastes, que diz que nada é novo sob o sol e tudo é vaidade. Mesmo com toda essa parafernália midiática, com todo os celulares e suas ferramentas de comunicação, ainda lidamos com os mesmos substantivos abstratos: amor, traição, solidão, agonia, desprezo, avareza, humilhação, abandono e coisas mais. É esse o segredo de um ritual medieval ainda fazer sentido. Mudamos o jeito de entender esses substantivos, mas os efeitos deles sobre nós são sempre os mesmos. Por isso precisamos das alturas, da pureza, da inocência. Enfim, começar sempre de novo e com várias sementes de pêssegos na mão.  

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Alzheimer


Alzheimer é um dos males do século. Uma doença em que a morte vem aos poucos com o desmanche do cérebro. Tudo começa com esquecimentos de tarefas corriqueiras e um dia se instala definitivamente com uma crise que mescla agonia, desespero e raiva. Já nem me lembro quando foi que minha tia me ligou dizendo que minha mãe não estava bem. Dizia que era uma filha de criação e que não pertencia àquela família. Fui em socorro. O que faria?
Ao lado dela, no sofá, mostrei-lhe a foto de seu irmão mais velho, o boêmio de alta estirpe, Jayme Mello, e lhe disse, “...se você é filha de criação, seu irmão mais velho também é, porque ele é a sua cara, só falta o bigodinho e o violão!”. Ela caiu na gargalhada. Aquela crise, especificamente, fora vencida.   
Mas o processo degenerativo continua e não me foi possível, como ser humano, entender, à época, o motivo disso. Sempre me perguntava: “...como que espiritualmente isso pode ser uma evolução? Haverá um dia em que ela se lembrará de que se esqueceu de tudo?”. Bem, sem respostas, segui em frente e veio a segunda crise: o retorno para a própria casa. Ao perder a noção de tempo e espaço, ela não reconhecia mais a própria casa, então queria retornar pra ela, porque sua mãe a esperava e já deveria, àquela hora, estar preocupada. No começo todos nós nos esforçamos para convencê-la de que a mãe, nossa avó, morrera em 1978 e que ali, onde estava com os dois pés, era a casa em que sempre havia morado. O que ajudava nesse momento eram as voltas de carro. Íamos mostrando as ruas, as pessoas e ela se achava de novo.
 O problema foi o número de vezes tivemos que fazer isso por dia. Normalmente umas quatro vezes. Nessas horas passamos a dar importância às coisas que nos são invisíveis, e/ou insignificantes, sobretudo quando estamos de posse de nossa arrogância. Coisas como: o pio do trinca-ferro do vizinho; o carro do fulano; o próprio fulano que aparece na janela; a árvore que faz sombra na porta da casa daquela conhecida que mora mais à frente; os pontos de comércio e seus respectivos donos; os fatos mais prosaicos como quando os netos passeavam de ônibus circular e de tão entusiasmados que ficavam com a avó, pareciam que iam se jogar da janela. Tudo traz a pessoa de volta, mas só por alguns minutos.
Um dia, nesse período em que sempre queria ir embora pra sua casa, me perguntou de maneira discreta e confidente, “...afinal, quem é a sua mãe?”. Eu sorri, reação que até hoje me espanta. Respondi-lhe dizendo seu nome. Dessa vez foi ela quem se espantou e me disse, “...nossa, é igual ao meu nome!”. Num outro dia, dessa mesma fase, ouvi ela falar de mim, pra mim mesmo, como quem fala a um amigo. E eram coisas boas de ouvir. Entre elas, “...sabe o meu filho, o Sávio, toca violão muito bem! Já ouviu?”. – Mãe é mãe, mesmo com Alzheimer.
Mas essa fase também passou e estamos, agora, como num mundo à base de fantasias. Ela vê pessoas, coisas, conversa com a TV, pega objetos imaginários no chão e às vezes nos mostra cenas do passado. Já me mostrou correndo na calçada, atrás do cachorrinho que tínhamos, quando vivíamos na rua Roberto Guarani, 154, nos idos de 1975. Sei a data por causa do nome do cachorro: “...olha lá o Savinho correndo atrás do Bingo! Viu como ele é rápido?”. Disse isso enquanto apontava pra debaixo da mesa de jantar.  
Tenho tocado violão pra ela. A memória afetiva não se desmancha. Talvez seja esse o segredo da espiritualidade que só agora entendi. Ou penso que entendi. Dias desses comecei os acordes de Stairway to heaven, do Led Zeppelin. Eu ouvia isso à exaustão quando era adolescente. Quando as notas entraram por seus ouvidos, ela levantou os braços, como numa celebração, e chorou. − Minha mãe, mesmo de dentro daquele cérebro que se espatifou como o barco de Robin Crusoé nos rochedos, ainda percebe sentido da vida e ela é boa. − Depois que acabei de tocar, ela disse: “...essa música é linda! Linda!”. Em seguida foi pegar um objeto invisível no chão. Bem provável que fosse um diamante, uma pérola, ou alguns grãos de areia da praia em que Robson Crusoé desembarcou.
A única coisa que nos cabe é silenciar. Sorrir. Dar carinho. Às vezes chorar e seguir em frente, com dignidade e paz no coração. A música mm fez entender isso. No meio de todos aqueles destroços está a figura humana que conheci quando desembarquei na Terra, ainda criança, há décadas, mas ela já estava lá, pronta para preparar meus primeiros passos e me alimentar com o próprio leite.
Dona Cida, não me lembro da última vez que lhe disse que a amava, mas nunca é tarde pra se dizer isso. Dessa forma, nós e o Led Zeppelin, vamos passar mais um Natal juntos, depois de tantos outros que passaram em vão. Beijos.