sábado, 9 de maio de 2015

Cerveja, zen budismo e Miles Davis

Pode até parecer repetitivo voltar a esse assunto, mas no outono me sinto melancolicamente-otimista. Não sei explicar. Saio de carro e vejo as tonalidades da luz, o asfalto, o verde do pasto, o azul vivo e puro. E acho que é assim que passo a me perceber como um ser vivente. É palpável a beleza da condição humana na luminosidade do outono. Parece que caminho pela Califórnia, pelo litoral do Mediterrâneo, vejo o mar da Grécia, − ‘ah! O mar da Grécia!’, − e por qualquer lugar que eu vá.
Enquanto a cerveja descia gelada pela garganta e a paisagem zunia ao meu lado, num belo passeio de sábado, com o som do carro cuspindo Miles Davis, − sei que o jazz é o próprio outono – me lembrei da China confucionista-zen-budista. Qual a relação? Não sei. Acho que nem nunca saberei. Mas não nego o que surge no cérebro de maneira despudorada, com a benção do coração, numa imagem livre até mesmo de meu comando neurológico. Quando o cérebro começa a funcionar sozinho, estamos diante não só é um sinal de liberdade, mas também das portas da loucura, a mais doce loucura que nos adota como hospedeiro.
Mas afinal, por que a China, enquanto ouvia Miles Davis numa bela manhã de outono? É que na China antiga o homem e a natureza andavam próximos, entrelaçados, o tempo consistia no que a natureza dizia e transformava. Dessa forma, no inverno, as pessoas se guardavam, ficavam olhando o mundo por detrás das janelas, pelas frestas. Passavam a maior parte do tempo sob as cobertas, sorrindo, acariciando-se; quando estavam fora da cama, permaneciam próximos da lareira contando histórias e tomando caldos. Havia lenha e comida guardadas o suficiente na dispensa para suportar o inverno; os chineses entendiam que assim deveria ser a vida, porque viam que pássaros, insetos e outros animais se escondiam no durante o inverno e esperavam o retorno da primavera para habitar o mundo externo.
Diante do vislumbre desse modelo de vida milenar e abandonado, atinei que o calendário que usamos, o tal calendário gregoriano, é um programa de desconexão entre nós e a natureza. – Claro, a Igreja Católica sobrepôs às datas de festas pagãs europeias suas próprias comemorações. Depois disso foi o mercado de consumo quem agiu sorrateiramente. Do carnaval ao natal, passando pelo dia das mães e dos pais, nossas ‘datas comemorativas’ nos impedem, simplesmente, que haja uma comunhão entre nosso interior humano e o esplendor da natureza. Deixamos de ser uma caixa de ressonância que se sente viva ao receber as frequências do mundo. O diapasão do mundo é de 432 Hz, mas já estamos surdos para ele.   
Sim, o calendário desvia nossas atenções sobre o que nos diz a natureza. Ela tenta transmitir o que emana do universo todo e deveríamos ecoar juntos, numa milagrosa reverberação. Mas estamos preocupados com a compra de presentes, com a festa junina que está por vir e no que devemos fazer para continuarmos a viver como se não houvesse as mudanças das estações, a própria natureza e o próprio corpo humano.
O melhor sol para nossos ossos, o melhor azul para nossos olhos, a melhor temperatura para nossa pele, tudo isso é despudoradamente permitido no outono. Mas pensamos, ou pensamos que pensamos, que somos seres lineares e não cíclicos. A ilusão de que estamos num gráfico cartesiano e que vamos avançando além da natureza porque vivemos como se não houvesse chuva, sol, vento e animais é a apoteose da auto-ilusão.
Não sei se há retorno, mas me sinto um Crusoé em meios aos seres planilhas, aos seres digitais, de cabeça baixa, olhando o ‘mundo que lhes cabe’ numa telinha do celular. Que será que há de tão importante nessas ondas digitais que superam o outono, o silêncio, as horas de se ficar à toa esperando as nuvens e seu bailar?
Pobre de quem sabe, de quem se sabe nefelibata, corre o risco de se sentir feliz. Melhor esquecer! Deixa que eu fico guardando e aguardando as estações. Assim seja!