Algo
que se assemelha à liberdade há de surgir quando pudermos controlar, ou
esquecer, as forças motrizes que nos cercam, que até nos dão sentido
antropológico, mas ao mesmo tempo nos escravizaram ao longo da História: o
Capital, o Estado, Deus, a Ciência e até mesmo se pode arriscar uma citação de
nosso aprisionamento aos aspectos culturais. São identidades que nos
trancafiam em conceitos por meio da subjetividade exigida pelos lastros dos
mesmos com a realidade. Achar o Ser em meio a tantos conceitos exalados por uma
longa ação histórica, em constante processo de auto-refutação, se torna algo
dantesco; podemos dizermo-nos, sem medo, como criaturas sísificas. - Talvez
controlar as forças motrizes venha a ser algo igual a esquecê-las.
Vivemos,
ao longo do tempo, com a ideia de que o Ser brotaria vívido e evoluído após séculos
de labuta dos fornos da dialética, em exaustivas tarefas de forjamento do homem-verdade-ser-livre
em definitivo. Algo que fosse intenso em si mesmo e soberano sobre protocolos e
sistemas. Mas parece que não há ser que o possa 'sê-lo' fora dos aspectos
fenomenológicos. Sem história, razão e fenomenologia, não existimos. Os
sistemas seriam experiências acumuladas e ratificadas pela razão que emana continuamente
do processo histórico.
Heráclito
sobrepôs a física à ontologia quando afirmou que não se pode atravessar a mesma
água de um rio duas vezes. Inserido o tempo, mais nossa dependência e submissão
a ele, somos induzidos a pensar, por meio do conceito de Heráclito que, além de
perecíveis, somos prescindíveis quanto à questão do criação, estruturação e
manutenção do ser e que não podemos, apesar do livre arbítrio, escolher, manter
e refutar 'o ser em si', no decorrer de (sua) história.
Já fenomenologia se alimenta da impressão que temos do mundo. São essas impressões que
nos formam, nos dão nossa consciência, além da maneira como vamos seguir em
frente, na relação pessoal com outros seres e como próprio sentido do mundo.
Robson
Crusoé, clássico da literatura de Daniel Defoe, após sobreviver a um naufrágio,
necessita reconstruir sua vida, seu ser, a partir dos escombros do navio que
flutuam nas águas litorâneas da ilha onde se encontra só e desconectado da
civilização, mas não de si mesmo. Além dos objetos e suas funções e significados,
Crusoé mergulha na memória, no seu sentido e na racionalidade para
(re)construir um mundo habitável. O pobre náufrago não tem escolha, senão
desobedecer a Heráclito e atravessar, por meio da memória e por várias vezes,
as mesmas águas do rio de seu tempo de existência pessoal e civilizatório para
continuar em frente, ou simplesmente não morrer.
Dessa
forma, os sistemas, as forças motrizes, impõem sua estrutura ao ser que, ao
agir por meio delas, há de crer em si mesmo como algo livre e autêntico e
senhor das escolhas binárias que hão de determinar a morfologia do espaço
geográfico. O espaço que se cria constantemente por meio da teoria exalada pela
força atual do capital. - No Egito antigo criava-se cidades e monumentos em
nome da religiosidade, da vida eterna do Faraó; Brasília foi construída para
servir a política, a independência dos poderes.
Robson
Crusoé tenta recriar seu mundo, seus valores, para que isso lhe possibilite, quase
que como um prêmio de consolação, a conversar consigo mesmo em meio ao abandono
e à solidão em que se encontra; isso lhe dá um parco sentido à vida de náufrago
em que se encontra. Ele não esquece da
metafísica, nem dos hábitos civilizatórios que o identificam como tal. Sua memória,
sua consciência, sua vontade, não se cansam de buscar nas águas do passado de
sua vida, e também da própria sociedade que habitava, aquilo que ele deve ser
naquele momento. Deveras, mesmo solitário, Crusoé não é livre.
A
existência, para que possa ser livre, dessa forma, deve se afastar da
fenomenologia da existência que paira no passado, e precisará ter ares de
esquecimento e desconexão para ser possível o início de algo levemente esboçado
numa concretude de liberdade.
Um abandono do processo dialético que,
supostamente, se embasa numa racionalidade inquestionável e que se reflete na história,
torna-se necessário para se começar algo livre, inclusive da própria consciência.
Num neologismo, necessita-se bem mais que a negação da dialética, precisamos
criar a 'desconexolética'. Além do esquecimento, da capacidade de esquecer quantas
vezes for necessário para o bem estar do ser que anseia a liberdade.
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