O homem-carro
Na minha cidade havia uma figura folclórica que se chamava Cavuco. Ele acreditava ser um carro e saía pela rua acelerando e passando marcha. Ia em meio aos automóveis, respeitando tráfego. Dizem alguns que até respeitava o sinal. Outros, mais maldosos, diziam que ele pregava adesivo nas costas, que era o seu vidro traseiro.
Uma vez atropelou uma velha que tentava atravessar a rua e foi parar na calçada, onde os carros não devem trafegar. Deitado no chão, com o barulho do motor na boca, ouvia os xingamentos da velha. Uma pequena multidão se formou em torno do acidente e ele dizia que, só sairia dali puxado por um guincho, pois era um carro moderno e estava no seguro.
Com o tempo ele sumiu, nunca mais o vi. Acho que saiu de linha, não suportou a modernidade. Pois afinal nunca se viu tantos automóveis no Brasil. Estão para todo lado. Um proliferação de carros 1000, que dizem, custa pouco.
Milhões de brasileiros indo para o trabalho, dentro de “seu” carro. O chamado transporte individual; ainda por cima com celulares cheios de recursos que, às vezes, até funcionam como telefones. Eis a modernidade do Brasil: Celular e carro 1000. Quem precisa de educação, saúde e segurança? Carros e telefones bastam!!. Céus, é o caos. — Felini, italiano, diretor de cinema já falecido, conhecido por sua paixão pelo bizarro, iria adorar a cena: milhares de automóveis com motoristas e seus celulares aos ouvidos, em auto-estradas sem placas, como no rodoanel de São Paulo, gastando mais tempo e energia do que produzindo.
Mas voltando ao Cavuco, talvez ele tenha desaparecido por não suportar a idéia de ser um orelhão ambulante. Carro, tudo bem!! Mas orelhão, não! Esse negócio de sair por aí com celular na cintura, ele não podia aceitar. Acho que tinha medo de ser privatizado e acabar sendo usado nas propagandas estúpidas da televisão.
Não sei que futuro nos espera. Tudo privatizado, tudo cientificamente produzido para dar defeito e se manter em consumo. Há quem ache tudo maravilhoso.
Em termos de esporte ele iria pirar: como explicar que Massa, de dentro de uma Ferrari, resolve, ‘de livre e espontânea vontade’ tirar o pé do acelerador e deixar seu rival passar. Carros de corrida programados para deixar o outro passar. É o fim da civilização ocidental.
Sei que posso soar meio que antiquado em minha crônica, com esse determinismo: Cavuco, se ainda estivesse vivo, não gostaria de nada, absolutamente nada do que a modernidade oferece. Acho que de uma coisa ele se orgulharia: os carros híbridos. Sonho maior de ser movido a álcool e também a gasolina. Quiça uma adaptação para o gás. E assim o motor se transforma numa espécie de santíssima trindade: álcool, gasolina e gás.
Até consigo vislumbrar: ele, Cavuco, numa crise de sustentabilidade:
— Melhor o gás da batata doce do que o gás natural.
Hoje ele anda pelas ruas da memória de alguns de nossos munícipes. Continua livre, acelerando, sem o menor pudor em relação aos boxes e aos radares.
Em Cruzeiro falta muita coisa, mas sinto falta de um museu que proteja nossa memória, — e pode parecer contraditório — , mas a memória anônima, daqueles que para muitos, são ‘ninguéns’; vivem gloriosamente nas histórias contadas nos bares, nos jogos de truco, às portas das missas, nos encontros de amigos e etc. Anônimos como nós dois: eu aqui escrever e você por aí, a ler, anonimamente. Mas cheios de histórias pra contar: lágrimas, risos, espantos e lorotas.
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