O despertador toca pela manhã. Acordamos. Uns dão graças a Deus porque têm um lugar para ir trabalhar. No caminho, às vezes, pensamos em por que fazemos isso. Depois vem a lembrança, a casa está cheia de móveis e eletroeletrônicos. Uns mais velhos e outros novos. Alguns pagos e outros a pagar. Sempre é um colega de trabalho, ou marketing da TV, que me indicam que é preciso atualizar-me, comprar novos objetos maravilhosos e me integrar cada vez mais. Mas me pergunto: Me integrar ao quê?
Volto pra casa e lá estão os bens adquiridos. Sempre pensei que eu fosse o dono deles, mas eis que uma luz me iluminou numa melancólica tarde cinzenta, o sino da igreja anunciava a Ave Maria, eu era a posse dos objetos. Eu trabalhava pra eles. Eles possuíam minha força de trabalho, meu suor, meu desgaste. Eu, um objeto dos objetos de consumo. Minha servidão foi constatada com o número de carnês que estavam sobre a estante, que me dizia que precisava ser trocada por outra mais clara, ou mais escura, ou de outro material qualquer.
Olhei bem pra ela, encarei com certa indignação. Eu queria minha carta de alforria e ela ali, querendo ser trocada:
— Já é hora, homem! Já não me cabem coisas. Compre outra!
— Que coisas?
— Ora, papéis, lembranças, bugigangas, etc.
Deixei-a falando sozinha. Sentei-me no sofá e liguei a TV. Na tela apareceram dois olhos gigantes. Tomei um susto, troquei o canal, mas os olhos continuaram se fixando em mim.
— Olá, você não acha que já esta na hora de me trocar?
Fiquei atônito por alguns momentos. Ela estava falando diretamente comigo.
— Ei, você é surdo? Já é hora de me trocar! — Não pude evitar e tive que responder:
— Trocar você? Por quê?
— Ora, estou fora de moda, muito larga, as telas de hoje são finas.
Desliguei e fui para o quintal, ficar sob a árvore. Aproveitei e liguei meu aparelho de vinil que fica na área de serviço; ele não fala, apenas toca os LPs que coloco no prato giratório. Aproveitei o fluir da música e fiquei pensando em minha condição servil aos objetos que habitavam minha casa.
Foi aí então que entendi, num vislumbre, que nossa sociedade vai se tornando diabética, cardíaca, estressada, cancerígena, reumática, paranóica, obesa, obsessivamente crônica e outras pérolas mais, enquanto que os objetos que trabalhamos para comprar continuavam fortes e vigorosos, cheios de saúde. Eles podiam ser trocados. Eu não, eu não podia me trocar por outro eu. Seria bom se pudéssemos entrar numa mega loja, tipo casas Bahia, e sair de lá com a posse de um outro eu, mais novo, mais calibrado e pago a prestações.
O pesadelo aumentou quando fui “tomado por uma súbita emoção”: que não só os objetos, mas as casas, os prédios das Igrejas, do Governo, as fábricas, tudo era mantido com o nosso desgaste físico, — inclusive formas de pensar que mais fazem mal do que bem. O resumo da ópera era trágico: minha saúde, toda ela, era canalizada para manutenção de um mundo que parecia sem sentido.
Quando estivermos mortos, todos de minha geração, e outros mais novos estiverem de pé sobre o planeta, os objetos que ajudei a construir e as formas de pensar que impulsionei, estarão vivos. Do meu corpo só restará o pó, mas as algemas que ajudei a construir - você também, caro leitor - estarão soltas pelo mundo, criando novos escravos e mais degradação do corpo humano.
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