Dos
quatro irmãos ele ficou em casa e cuidou da mãe. Solteiro, do trabalho pra
casa, da casa para o trabalho e durante longos anos. Sabia da rotina da pequena
cidade tal como sabia de si mesmo. Olhava
sempre pela janela do escritório de contabilidade os mesmos passando pela rua.
Um universo de mil e poucas pessoas numa cidade pode ser menor que uma caixa de
fósforos. O rádio sempre tocava as mesmas coisas, pois o “dono” da rádio
comunitária tinha poucos discos. A estação ferroviária, motivo da cidade ter
surgido, era a toca do chefe da estação, de uniforme azul, cadeira inclinada,
encostada na parede, cochilando e vendo o movimento nenhum das carroças e caminhões
de leite. Esperava apenas pela a aposentadoria.
Suas lembranças se resumiam à infância, à partida dos irmãos, às
chuvas que destruíram estradas, à morte de pessoas, cachorros e bois da região.
Padres que iam e vinham, trens que, às vezes, mudavam a cidade com seu barulho
de universo sendo rasgado. À noite, horário nobre, ele e a mãe saboreavam a
eterna rotina da TV. Onde não havia rotina?
Heráclito às vezes se lembrava de seu pai, filósofo de botequim,
que havia batizado os quatros filhos com nomes de filósofos. Sempre dizia a ele
que o filósofo Heráclito anunciou que não se podia atravessar duas vezes a
mesma água de um rio. Tudo mudava constantemente, a água que passava, não
voltava mais. A água era o tempo. Assim ele percebia que sua vida era uma
contradição: seu nome era uma homenagem ao pré-socrático que defendia o eterno
movimento, mas sua vida era a eterna pasmaceira daquela cidade. Vivia na mesma
água, sempre. Não era aquilo um rio, mas sim um lago pequeno e raso. Andava no
mesmo barro todo dia. Nem a agonia fazia efeito. O domingo, à tarde, era a
própria essência de tudo o que era estático. A mais profunda silenciosa dor do
mundo.
Mas um dia a dor de Heráclito começou a mudar. É que todo universo
por mais extático que possa parecer, também se transforma. É demolido por uma
força centrífuga. Suas saídas do escritório eram sempre às seis da tarde.
Sempre sob o mesmo crepúsculo, ia solitário, carregado de cotidiano, sem a
menor chance de amar alguém. Sabia até mesmo das folhas que caiam no chão,
sempre nos mesmos lugares, fazendo os mesmos desenhos. Um dia, sem saber o
porquê, entrou na igreja. Antes da Missa a capela ficava aberta e praticamente
vazia. Então ele começou a
olhar o que já conhecia e foi aí que conheceu a mulher que mudou sua vida.
Foi na capela paralela ao altar que ele a viu. Vestido branco, com
o olhar mais doce que uma mulher pode ter; Heráclito caiu de joelhos. A água do
rio, finalmente, havia passado diante de seus pés. Sentiu o mundo girar, a
brisa tocou seus em cabelos; era o amor pelos olhos da mulher vestida de
branco. Tudo normal não fosse a mulher uma estátua de Santa Clara.
Em casa não conseguiu mais se concentrar na TV. Seu pensamento
havia sido tomado pela estátua daquela mulher que a Igreja dizia ser santa. Mas
se era ela a parte que lhe cabia nessa vida marasmática, sentiu a ansiedade
tomar-lhe o mundo. O travesseiro não lhe deu paz, seus sonhos eram de olhos abertos,
salpicados pelo suor da inconformidade por não poder beijar Clara. Ela não era
santa, mas sim seu amor. Iria lutar contra tudo, contra todos só para tê-la em
seus braços. Um cavaleiro deve destruir os algozes de seu amor, o castelo que a
guardava deveria ser invadido. Era preciso buscá-la o mais rápido possível.
Mesmo sem ter dormido uma gota, entrou na igreja e ouviu o sermão
do padre. Por coincidência, era sobre o amor de Clara por São Francisco, um
amor puro, sem contato carnal, abençoado pela Igreja. Heráclito sentiu uma
revolta profunda, ninguém saía dizendo aos quatro ventos que sua amada tinha
outro homem, mesmo que esse homem fosse santo. Sua honra fora ultrajada, tinha
que desafiar seu concorrente a um duelo. Assim é que se resolviam os triângulos
amorosos.
Em seus relatórios só via espadas, cavalos e lanças. À tarde iria
libertar sua amada daquela prisão. Precisava de um cavalo, de uma armadura e de
muita coragem. Antes de terminar seu expediente, saiu em busca do cavalo. O
encontrou-o perto da Estação de trem, pastando no abandono da Rede Ferroviária.
Com a crina como rédea, o levou para o alto do morro onde um alpendre
abandonado seria seu paiol. Suas armas seriam colocadas ali e ao amanhecer,
invadiria a igreja.
Passou a noite em
vigília. Um São Jorge
a espera para vencer o dragão. Sua mãe não o viu mais, o esperou por toda
noite. Escondeu-se na vergonha, tinha medo de pedir ajuda. Se um filho não
volta pra casa, é por que algo maior o prendeu. Mulheres, jogo, festa, música,
coisas assim. Ela não precisava ligar para a polícia. Mais cedo ou mais tarde
os filhos saem de casa. Heráclito havia escolhido sair por último. Sim agora
ela estava sozinha. Diante dela apenas uma estrada abandonada que findava no
túmulo. Eis a perfeição.
O sol tocou nas lâminas da armadura de Heráclito e como num sinal,
desencadeou suas ações morro abaixo, rumo à fortaleza que prendia sua amada. A
paisagem passava zunindo por sua cabeça; àquela hora da manhã ninguém presta
muita atenção em um homem em sua armadura sobre um cavalo marrom e branco.
As patas dianteiras arrebentaram a porta da igreja. As ferraduras
estalavam no chão de granito. Passou com sua espada em punho diante do altar e
com uma só pancada, arrombou as grades que cercavam Clara. Ela levantou os
braços e com os olhos em lágrimas, encontrou a garupa de seu herói. Saíram
pelos jatos de luz da porta principal. O mundo os esperava, quem poderia dizer
que não?
Longe da cidade, sobre um morro verde, Heráclito levantou a tampa
de seu capacete e beijou sua amada. A brisa fazia aqueles cabelos claros voarem
soltos pelo mundo novo. Os corações batiam forte. Ela não era mais de pedra,
nem ele de gelo. Mas no auge, vem a mancha da ferrugem. O sorriso de Clara foi
se fechando. Ela olhava pro horizonte. Algo vinha na direção deles. Ela disse
que era Francisco. Ele não iria deixar que sua amada fugisse assim, com outro,
após séculos de espera. Seria preciso um duelo pra ver com quem Clara ficaria.
Heráclito sentiu o mundo todo sacudir seu norte. Não se duelava com santos,
inda mais São Francisco. Mas Clara não deu opção a seu cavaleiro. Ou era luta,
ou ela ia com o santo.
O tempo girou como numa névoa, o cenário transfigurou-se e eles
estavam numa arena. No local do imperador romano, estava Clara. Iria esperar o
vencedor para desposá-lo numa longa lua de mel mundo afora.
O gongo soou e os gladiadores se aproximaram. Heráclito levantou a
espada e estava pronto para decepar o santo. Quando seus olhos viram os de
Francisco, se deparou com tanta ternura, tanta humanidade que todo seu corpo
desfigurou-se de uma só vez. Seu sangue irrigava tudo com uma força jamais
vista. Não poderia matar aquele homem, aquela simplicidade plantada diante
dele, era tudo o que ele não fora. Não era possível atravessar a mesma água
duas vezes porque não se podia viver fora do rio, fora do ar matinal que
orvalhava o mundo. A espada foi ficando pesada, foi caindo e o mundo
desaparecendo. Não viria mais Clara. Uma longa noite se abateu sobre o reinado
de Heráclito.
Quando acordou, deparou-se com os olhos do enfermeiro como dois
objetos luminosos. Um sorriso brilhava naquela face. Conforme adentrava a
razão, percebeu que um outro enfermeiro também estava ali. Então ouviu.
- Foi a crise mais forte que ele já teve!
- Com certeza!
- É preciso dizer pr’aquele médico novato,
que Jimi Hendrix não é indicado a pacientes que vivem aqui.
- Deixa que eu falo.
Crônica.Muito boa!
ResponderExcluirLoucura pouca é bobagem...!Auuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!
Muito boa, e não tem aquele negócio medicinal, o purple haze?!
ResponderExcluirEi, Já viu o Galeano no meu blog uns dias atrás, essa cronica me lembrou o papo dele.
Abraço, faltam dois meses...