segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Maciel Cisterna



Maciel tinha a cabeça no formato de uma cisterna, diziam que sabia de tudo. Devorava qualquer livro, ou qualquer informação de maneira rápida, e que em poucos minutos era capaz de discursar sobre o assunto absorvido e sem o uso dos dentes, ou da necessária digestão metabólica cerebral. Dava luz imediata a ensaios, que para freqüentadores de salões acadêmicos, medianos em sua formação, sugeriam pérolas da originalidade. Mas que na verdade, desmascarado o vocabulário pomposo e rococó nas entranhas de tais ensaios, emergiam meros aglomerados de citações de outros autores. Era seu maior segredo, o fato de não ter uma voz original.
Apesar de lecionar Lógica, seus alunos, durante suas exibições retóricas e digressões temperadas por UFOs, espiritismo, xamanismo e ‘filosofismos’, nunca conseguiram desenvolver uma linha de raciocínio que os libertasse do labirinto da ignorância. Quanto mais aulas, mais trevas e mais citações de um mundo distante e, inevitavelmente, menos lógica. Aos pobres alunos só restava uma arma: afagar o ego da Hidra das citações vaidosas para que ela não os castigasse na nota. Logo, em termos lógicos, só sobrava aos alunos a manipulação. 
Mas um dia a casa caiu. Uma bela noite um aluno lhe perguntou o que significavam os versos: “...homens vestidos como nuvens, ajoelhados diante de redes crepusculares...”, de Dylan Thomas. Abatido, sem voz, sem capacidade de entender uma simples metáfora que indicava o fim comum da vida de velhos pescadores do país de Gales, terra de Dylan Thomas, e também pelo fato de nunca ter lido nada a respeito do poeta, Cisterna extraiu do limbo a frase que sempre condenou em seus colegas, “...vou pesquisar, depois te explico!”. Foi o silêncio mais constrangedor já ouvido naquela Universidade.
Pode parecer estranho, caro leitor, um aluno perguntar ao professor de Lógica sobre uma questão de Literatura, mas Cisterna dizia-se a última coca-cola do deserto, e que sabia de tudo e lia sobre todos os assuntos. Era um buraco negro capaz de absorver qualquer livro e expelir a luz de suas páginas em forma de críticas, ensaios, artigos e discursos mais.
Pobre Maciel Cisterna, dizem que até hoje não aprendeu que o significado de ser sábio corresponde ao gesto de saborear, sorver lentamente os saberes do mundo. E ainda: que o oposto disso, segundo o bom e velho Nietzsche, a quem agradeço as lições de vida, é a gula suína, que não mastiga o que come, e simplesmente engole sem sentir o sabor de coisa alguma.
Se engana quem pensa que tive aulas com o Cisterna, quando passei por essa Universidade. Me formei em Assistência Social, um curso que não tinha espaço para um professor de Lógica. Na realidade, eu ouvia conversas nos balcões dos botequins que rodeavam o prédio da Universidade. Muita piada, muita maldade, muita invencionice.
A última que me chegou aos ouvidos, quando já estava formado, parecia um castigo do Olímpo. Sua noiva, cansada de esperar por seus doutorados, o trocou por um pé-de-valsa, um mestre de salão de bailes de forró; uma alma simples, que nem diploma ainda conquistou, mas que é gentil e doce a ponto de roubar o coração de damas que vivem trancafiadas em castelos acadêmicos.
Espero que hoje esteja lendo Dylan Thomas e entendendo por si só e que ele não se confunda quando souber que o poeta Gales disse que uma cerveja gelada, no primeiro gole, é Deus engarrafado.                                                                 

Um comentário:

  1. Um brinde a Dylan Thomas.Auuuuuuuuuuuuuuuuuuu!
    E um poema de Dylan Thomas...

    EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA

    Em meu ofício ou arte taciturna
    Exercido na noite silenciosa
    Quando somente a lua se enfurece
    E os amantes jazem no leito
    Com todas as suas mágoas nos braços,
    Trabalho junto à luz que canta
    Não por glória ou pão
    Nem por pompa ou tráfico de encantos
    Nos palcos de marfim
    Mas pelo mínimo salário
    De seu mais secreto coração.

    Escrevo estas páginas de espuma
    Não para o homem orgulhoso
    Que se afasta da lua enfurecida
    Nem para os mortos de alta estirpe
    Com seus salmos e rouxinóis,
    Mas para os amantes, seus braços
    Que enlaçam as dores dos séculos,
    Que não me pagam nem me elogiam
    E ignoram meu ofício ou minha arte.

    (tradução: Ivan Junqueira)

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