A vida não começa aos 40. Pelo contrário, é quando inicia seu declínio inevitável e não menos belo. É como dobrar a esquina e topar com a saudade sentada no banco da praça. Ela tem olhos claros, usa véus em tons pastéis e tem sempre um sorriso no rosto; além de uma voz macia, “Onde você esteve, nesse tempo todo?” Depois dos 40, o mundo não é mais novidade, “foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar”.
Ultrapassados os 40, comecei a pensar no quanto de estrada ainda me resta. Penso nos livros que não poderei ler, em quantas garrafas de vinho deixarei de beber, no desaparecimento lento das pessoas que fizeram parte de minha história; filmes e músicas ficaram para trás. Mas a saudade é carinhosa, na minha casa de criança havia um pôster de Bridgit Bardou, onde ela aparecia com um chapéu de um carvoeiro. Zeca Baleiro fez uma canção que diz, “a saudade é Bridgit Bardou acenando com a mão, num filme muito antigo”.
Dias desses, passei a me lembrar dos shows que assisti no Brasil F.C.: 14 Bis, Belchior, Guilherme Arantes, Alceu Valença. No show do Alceu a gente gritava alto, “morena tropicana, eu quero seu amor, ah! ôi ôi ôi!”. Cheguei de manhã em minha casa, a aurora dizia às criaturas da noite que era hora de dormir, e tava lá minha mãe passando café. Sem dizer bom dia, disse: “daqui eu ouvi o morena tropicana”.
Dos carnavais eu sempre me lembro do formato do Cruzeiro F.C.: um clube como um tacho de boca pra baixo, as paredes eram curvadas nas bordas do salão, “vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval”. Essa música tem, nesse meu naco de saudade, o formato das paredes do Cruzeiro F.C., é só ouvi-la e me lembro dos bailes dentro do tacho. Colombinas e odaliscas com os umbigos de fora.
Diante da dama vestida em tons pastéis, posso olhar pra trás, ver por onde o rio passou. Mas ela também, a Dona Saudade, tapa nossos ouvidos, dedo em riste sobre os lábios e diz, “escute!”. Trata-se de um alerta. É que o mar está próximo, é onde o rio acaba. Podemos ouvir claramente o barulho do mar. “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito!”.
Quando olho bem no fundo dos olhos da saudade, já disse, ela tem olhos claros, quero dizer-lhe que não há mais poesia no mundo, que a juventude se divorciou da arte, e que tudo é sem sentido. Mas de novo com o dedo sobre os lábios, me diz que sou eu quem mudou e é quem está se apagando lentamente; e isso não é somente belo, como também é assustador. Mas esse ‘assustar-se’ é silencioso e é a vida que é assim mesmo: ‘e é bonita, é bonita e é bonita!’.
Pro tempo que me resta não tenho projetos, posso dizer que só quero é segurar nas mãos da mulher que amo, e deixar o carrinho descer a montanha russa do jeito que tiver de ser. É minha única vitória diante do mar que está por vir. Talvez o pior dos mundos seja o de ficar para trás. — Imaginar-me em pé, diante do túmulo onde adormeceu a companheira que escolhi para seguir a vida toda, e compreender que ali, sob a terra, seu corpo está se esfarelando, é o maior dos pesadelos futuros. Por isso é melhor ir ‘na frente’, como diz o dito popular: a dor é de quem fica.
Ao se viver de saudade é sinal de que a morte, uma mulher de roupas escuras, negra como a noite, salpicada de estrelas, está no mesmo jardim que a saudade e só alguns bancos à frente. É a hora que nos tornamos bígamos, uma mão para a saudade e outra pra morte. Até ensaiamos uma dança lúdica, como nas rodas do jardim da infância. ‘Saudade e Morte’ sorriem enquanto bailam ao redor do homem que já alcançou a metade do caminho.
Enquanto rodopiamos o carnaval silencioso, quero dizer-lhes de novo, com aflição, que tenho medo de ficar diante do túmulo daquela que amo quando for preciso. Um adeus com gosto de eternidade é atroz por demais. Mas elas são indiferentes ao meu desejo de pactuar, e não me darão a garantia de que irei à frente, tornando-me livre dessa dor do mundo. Então levam às mãos à boca como se fossem conchas, como no coro do teatro grego, e dizem juntas:
— Pobre mortal, a poesia é isso mesmo!