terça-feira, 22 de julho de 2014

O elmo invisível

O desenvolvimento da psique humana sempre esteve associado ao que o cérebro pensa a respeito do bosque. O que ele vier a ser em nossas pobres mentes, revelar-se-á quem somos nós. Thoreau dizia que se sentássemos para admirá-lo em sua beleza, chamar-nos-iam de vagabundos. Mas se cortássemos suas árvores para alimentar uma patética indústria de consumo, seríamos empreendedores. 

Os hippies, quando mergulhados numa nuvem de THC, - fase pela qual passou a sociedade -, levaram ‘o cérebro social’ a recusar a civilização. Cultuaram e/ou absorveram o mundo selvagem, os aspectos silvícolas pelos quais a humanidade passara em seus primórdios. Como se num passado de árvores intocadas, em meio a regatos de água limpa, em meio a homens e mulheres que expunham seus corpos ao sol e os cobrissem de pele selvagem, à noite, para fugir do frio, houvesse o único sentido da vida; pelo menos para aquela vibração cerebral hippie.

É fato que, foi nesse mundo primitivo, perto do fogo, rodeado pela densa noite em escuridão, às vezes salpicada de estrelas, ou noutras com a deusa mãe-lua-metamorfose brilhante, inebriante, misteriosa, delirante, que a humanidade iniciou o ato de divagar, o ponto de partida do pensamento dos ‘fantasmas’. Vislumbrando o passado, o futuro, o presente, os deuses, as ervas com suas viagens e os animais com seus mistérios, que a humanidade iniciou sua ‘viagem’ nesse imenso universo sem fronteiras, que é 'simplesmente' aquilo que somos no interior de nossas mentes.

Todos os meus delírios, sonhos e aspirações, foram fundidos num único átimo e moldaram em minha cabeça um elmo invisível; a barbicha é facilmente observável. Vou com meu cavalo, Pasmaceira, deserto afora, que é a antítese do bosque, um território devotado à imensidão que passa por dentro do peito e me projeta numa solidão silenciosa, incapaz de praticar mal algum, ou de qualquer caridade. Pasmaceira é velho, tenho, às vezes, que caminhar e puxá-lo pelas rédeas e então posso olhar o céu de estrelas. Penso no nome de minha Dulcinéia del Toboso e de imediato uma estrela cruza o céu. Sincronia com os átomos do universo. Como um Rei Mago devo segui-la como quem busca pela simplicidade de um sorriso, ou de uma palavra no sabor de menta, nascida assim, como nascem os deuses, em meio aos gestos das mãos e sonhos descritos pra vida.

Passado o deserto, me deparo com o bosque. Paro e faço uma reverência. Não se pode entrar assim, sem castimonia alguma. Então me banho de vinho e me abasteço de cachimônia. Meus antepassados gregos descobriram as traquinagens dos deuses porque bebiam o vinho, bebida advinda da fruta mais adúltera da terra, pendurada em cachos, oferecida a quem lhe quiser lamber por inteira nos beiços, esmagá-la com a língua no céu da boca. 

No sangue humano o vinho convida o cérebro a dar voos altos, Ícaro etílico, e lhe empresta os olhos perspicazes das águias das montanhas e vejo então os deuses num cenário de ilusões concretas, onde nos guiam, nos amam e nos odeiam. Pensar a si mesmo é o primeiro passo para se libertar dos deuses, da história, do mundo. Eis a mágica do vinho, do fogo, das paixões.

sábado, 19 de julho de 2014

O bosque é o pensamento


Gunter Grass é minha antítese ao escritor judeu e Nobel de literatura, Isaac Bashevis Singer, e por si só, o outro lado da mesma moeda. Um menino alemão que foi seduzido pela juventude hitlerista e, durante a 2ª Guerra mundial, se alinhou aos valores, discursos e ‘sonhos’ arianos; uma criança, que como milhões de outras, não percebeu a força maligna do Estado nazista trespassando por seu corpo, sua mente e criando alicerces em suas palavras e em seu coração. Mas ele sobreviveu ao pesadelo e se tornou um homem livre dessa praga. E tal como Singer, escolheu a literatura como trabalho e produziu livros belíssimos. Um deles conta a história do último ser humano que ainda sobrevive num mundo pós-apocalipse-radioativo. Até certo ponto um enredo normal, não fosse a morada desse Crusoé às avessas, a ‘mente’ de uma Ratazana.
A tal Ratazana, que também dá título ao livro, conversa com seu amigo humano exilado em suas lembranças através do pensamento. Por vezes ela o ameaça, “...diga isso de novo e nunca mais penso em você e assim poderá morrer no esquecimento”.  A triste figura humana, flutuando na mente da roedora, pede desculpas, pois sabe que não tem alternativa: pra continuar a viver, precisa aceitar as críticas ácidas desse animal repugnante, além de ver os fatos armazenados em sua memória como se fosse num cinema tétrico. Várias lembranças aparecem diante de seus olhos, são 'filmes' e mais 'filmes'. Num deles há o último bosque ainda 'vivo' na Alemanha. Para defendê-lo do fim inexorável, todos os personagens dos contos de fadas clamam aos povos que os ajudem: "É preciso salvar o bosque!"  
        Porém o governo alemão se prepara para inaugurar um bosque irreal, a única maneira de enganar o pensamento crítico. Se trata de um bosque de plástico, uma ilusão, um fake para atender aos personagens dos contos de fadas que logo concluem que, viver diante de um bosque de plástico é o mesmo que viver diante de falsos pensamentos. -  Assim são revelados os últimos suspiros da Terra nas várias narrativas paralelas que atormentam o último homem e ao leitor também, que está na mesma situação desse sobrevivente terminal: não há mais Terra, só a mente da Ratazana sobre escombros, chorume, ácido e uma revisão histórica sádica e sarcástica.       
Em meus devaneios o bosque é habitado por ninfas, as quais a humanidade ama profundamente. A sedução das árvores, do vento, das sombras nas profundezas me atraem constantemente. Meu Ego me diz que elas estão brincando comigo, que riem de mim pelas costas, que criam coisas fantásticas para um homem velho que se mantém em guarda diante do bosque e não sabe se segue em frente, ou se retorna. Mas eu não ligo. Os sonhos, o amor são poderes que também pode destruir o que sou; tal como a morte o fará.
Sabina Spielrein, paciente de Carl Jung, em 1906, que 'havia ficado louca' porque sentia prazer com a dor, e logo só poderia ser uma aberração, sabia que o amor liberta porque destrói. Não me importo em ser feito em pedaços. Morreria mil vezes para sentir, de novo, o néctar do vinho da juventude das ninfas e depois uma carícia na pele eternamente jovem dessas belezas mitológicas.
Quanto mais as amo, mais minha alma flutua e me torno jovem; as impurezas do corpo se transmutam em estrelas cadentes. Como não amá-las, como não morrer diante de olhos castanhos tão ambíguos, como não adentrar no bosque e abraçá-las à revelia da história, do destino? – Digo a meu Ego que quando as amo, nos poros da tarde, no passar das horas, passo a ser barbaramente o que sou. Desejo despudoradamente ser ainda mais eu mesmo e sem piedade alguma. Ali está o bosque, ‘sombrio, atraente e escuro’ e com dúbios olhos castanhos. Às vezes não percebo que as árvores são metálicas. Carvalhos de bronze, pinheiros de cobre; mas ao toque dos dedos, sinto que é tudo madeira nobre. 
Sabina morreu na Rússia, assassinada pelos ‘heróis nazistas da infância’ de Gunter Grass, dentro de uma sinagoga, na 2ª Guerra mundial. A filha estava junto dela. Em seu diário, encontrado anos depois, pedia que quando a morte a levasse, que fosse cremada e suas cinzas jogadas num bosque e que uma placa com a inscrição, “Aqui jaz Sabrina Spielrein, alguém que também viveu e morreu como um ser humano.”, celebrasse sua jornada pela Terra e, finalmente, seu descanso na escuridão do bosque.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Cronos



Na mitologia grega tudo veio do Caos. De baixo pra cima, da matéria pra luz, da desorganização para a organização. Por isso rumamos à nossa fonte original, o Caos. Sentimos isso em nosso corpo, pois no auge da juventude, tudo é vivo, a força da natureza flui através de nós sem entraves, como se fossemos resistências elétricas; na física são chamados de resistores. Mas o tempo nos desgasta e vamos rumando para uma degeneração lenta e constante. A força da natureza, pelo contrário, continua firme e implacável. Nós, não.
Foi do Caos primordial, segundo os gregos, que nasceram o céu, Urano, e Gaia, a Terra. E da constante cópula entre Gaia e Urano, os primeiros Titãs; entre eles, Cronos. Urano não aceitava os filhos e os devolvia ao fundo da Terra. Gaia, dessa forma, se rebelou contra Urano e pediu a Cronos que castrasse o pai e assim foi feito. Isso explica porque o Céu e a Terra nunca mais se misturaram. Cronos começou seu reinado ao lado de sua irmã, Reia, mas tal qual o pai, tinha medo de perder o trono para os filhos e os devorava. Reia, por sua vez, pediu a Zeus, o filho caçula, que matasse o pai, Cronos, e libertasse seus irmãos de seu ventre. Assim Zeus o fez e, segundo a mitologia grega, reina soberano até os dias de hoje no Olimpo.
Porém, o sangue de Cronos escorreu pelo mundo e por isso o tempo, (Cronos), não cessa seu efeito sobre nós, os pobres mortais. Percebemos isso quando nos relacionamos com os nossos filhos. Como podemos ser bons pais se dedicarmos todo o tempo do mundo a eles e nenhum a nós mesmos? Que tipo de pais seremos se formos desprovidos de ‘tempo’ para nossos próprios sonhos e desejos? Pessoas sem atrativo algum, descartáveis e amargas, ou santos abnegados da própria vida? O contrário disso é o abandono dos filhos, que poderão vir a ser qualquer coisa: de anjos a demônios, a seres brilhantes e/ou opacos.
Já no cristianismo, Jesus obedeceu ao pai. Que pena! Por que não fez como Zeus e mandou o pai às favas e casou-se Madalena? Teria sido muito mais feliz. Nós, aqui embaixo, sempre damos um jeito e vamos tocando a vida. ‘Jesus’ não entendeu que os pais devem ser destruídos, metaforicamente, psicologicamente, pelos filhos. Quando nos tornamos adultos, deveríamos entender que nossos pais são tão cheios de inseguranças, desejos, frustrações e amores mal resolvidos tal como nós o somos. E isso deveria fazer com que fossemos mais tolerantes uns com os outros. Essa é a base do amor universal, entender que os outros passam pelas mesmas provações familiares que nós.
O Pai Eterno é o grande erro de nossa sociedade. É fruto de uma anomalia, que tem como consequência a eterna infantilização dos homens. Querer estar sempre sob a guarda de um Pai eunuco, com barbas brancas, impotente, incapaz de produzir qualquer tipo de arte, é um profundo desejo de não viver, o que Freud chamou de pulsão de morte. Amar a Deus sobre todas as coisas é o mesmo que não se amar e deixar de viver. E lhe digo mais, Cronos pouco se importa se você é católico, evangélico, budista, espírita, ele vai corroendo sua vida sem pedir licença a ninguém. Então, meu amigo, viva! 
Se Deus, ou os deuses, nos amassem mesmo, impediriam as doenças que nos acompanham em nossa jornada sobre a Terra. Teriam nos feito como eles os são: imortais, viris, cheios de arrogância, maldade e talento. O amor eu só encontrei entre os humanos, alguns poucos, o resto são estátuas, mitologia, ou textos. O único deus que (re)conheço é Cronos. Esse sim é real! Basta eu olhar no espelho. Você também pode fazer isso: vide a si mesmo no espelho e então verá a Cronos. Não adianta rezar, ele não ouve.