segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A consciência servil



Quando alguém passa a ter consciência sobre si mesmo se torna um campo autônomo e desejante que emerge, sem pudor, do processo histórico e prioriza o sentido de uma vida própria.  A bem do raciocínio, deve-se entender que a história é uma sucessão de fatos baseados na construção do mundo material, o espaço geográfico, e tal construção se dá em função da relação entre a consciência do ‘senhor’ com a dos 'escravos'. − Ou, em outros termos, entre as mentes investidoras com as ‘mentes’ executantes, funcionais, que subjacentes, movimentam o sistema ao obedecer a uma hierarquia de valores e a um conjunto de regras econômicas.
Esse ‘senhor’, que é sempre histórico e hoje é pós-moderno, como tem consciência própria inalienável, se torna livre e proprietário legal, virtual e cultural da liberdade. O sintoma da liberdade é a capacidade de agir e desencadear reações em função daquilo que pensou e/ou desejou sobre o mundo. Já o ‘escravo’, também histórico e pós-moderno, por sua vez, tem de abrir mão de sua própria consciência e torná-la autômata, eficiente, pronta para reagir ‘positivamente’ aos estímulos dos ‘senhores’, enquanto mantém seus sonhos e desejos nos limites da tutela da lei.
Mas entre essa massa de ‘escravos’ pós-moderna há os despertos semi-resignados que não aceitam o sistema, mas que também não o combatem com a força devida de suas potências intelectuais. Sua subversão se limita a pequenas infrações e/ou displicência recheada de atos relapsos, que lhes constituem um pequeno alívio ao pouco que ainda existe de consciência livre em suas entranhas. Há espaços na sociedade que são mais tolerantes a essas pequenas ‘licenças poéticas’ dos pseudos-subversivos versão light, e outros intolerantes ao extremo, criando uma apoteose dos conceitos ortodoxos para permear a relação entre ‘senhores’ e ‘escravos’.
Em tempos de escravidão, no Brasil, havia uma figura emblemática, o Capitão do Mato. Era um negro que caçava outros 'escravos' que fugiam em busca da liberdade e, por consequência, desejosos de ter a própria consciência. O Capitão do Mato era a personificação do 'senhor', portanto desprovido de uma existência em si mesma. Era uma (in) consciência que recebia proventos em função da capacidade e da 'qualidade' de extirpar os desejos de liberdade dos seus semelhantes.
Ainda se pode, em pleno século XXI, nas fábricas, escolas, repartições públicas, exércitos, igrejas e empresas em geral detectar a figura do Capitão do Mato. São os gerentes, os encarregados, os coordenadores, os diretores, os supervisores, os mestres, os doutores que se especializam em reproduzir o discurso do ‘senhor’ que corresponde, em suma, à concretização dos desejos dele.
Há toda uma estética nessa subserviência: o cabelo devidamente asseado, o terno e a gravata, o falso discurso progressista, a suposta posse de pensamentos objetivos e subjetivos, os conceitos embasados na certeza do saber de como as coisas devem ser feitas. São artefatos de uma metafísica: o ‘senhor’ do empreendimento está em todos os lugares, ao mesmo tempo em que não está. Sua onisciência é baseada no ‘comportamento drone’ dos capitães do mato, que como diria Foucault, somos nós todos, em tempos de apoteose do capitalismo financeiro.
Essa consciência servil se regozija quanto mais é capaz de dizer ‘não’ à massa subalterna, pois sente que tem posse sobre parte do discurso do ‘senhor’.  Os capitães do mato acreditam que o sucesso e a eficiência estão intrinsecamente ligados à capacidade de fazer as pessoas obedecerem às regras impostas. Por que se acredita que quanto mais as regras forem obedecidas, mais humanizados seremos nós? 
         Em termos práticos: certa vez vi uma diretora de uma escola pública proibir o professor de usar o ‘data show’, só porque o mesmo não estava agendado previamente, apesar de estar consciente de que ninguém iria usá-lo. Mais importante do que o desenvolvimento pedagógico dos alunos, é a regra do agendamento do ‘data show’. Que Deus abençoe a mediocridade.