quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Eu e o Diabo



Foi nessas noites em que a garoa cobre a cidade. Eu estava saindo de uma padaria, passando em frente a uma igreja protestante e ele saiu com sua capa preta, ar de cansado e fumava um cigarro amassado. Enfiou as mãos nos bolsos e começou a caminhar ao meu lado. É feio deixar os outros sozinhos na calçada, quando se caminha na mesma direção. Disse “boa noite”. Ele só balançou a cabeça e disse, “...tenho plantão em quase todas as igrejas, sexta é dose.” Em suma, ele recebia para entrar nas igrejas e se apossar de algum espectador. Com o domínio do corpo do pobre fiel, se jogava no chão e começava a se estrebuchar. Em seguida vinham os cavaleiros da salvação e faziam o exorcismo. Durava não mais do que cinco minutos. Ele saia e o pobre voltava ao normal. E logo ia para outra sessão, em outra igreja, ainda em andamento.


— Você não é onipresente? — Perguntei inocentemente. Ele disse que essa patente era de Deus. Já havia tentado uma utilização simultânea com primos, só que deu zebra, a parentada bebia demais e as possessões caiam no descrédito. O máximo que havia conseguido era uma terceirização com Judas Escariótes e Barrabás, que também atormentavam nos centros kardecistas, o que criava uma sobrecarga. Os demônios da antiga Babilônia já estavam aposentados e viviam em paraísos fiscais. Ainda curioso, puxei mais assunto.


— Mas aos fins de semana você está livre? — Outro engano. Disse que aos sábados trabalhava pros católicos. A renovação carismática requisitava muito sua presença, tal como também já ocorria nos cultos protestantes. Era de domingo a domingo. Férias? Nunca! Convidei-o para um café no balcão do bar em que passávamos em frente. Ele agradeceu e disse:


— Enfim, um gesto cristão.


Ele não quis adoçante nem açúcar. Me disse secretamente que causavam impotência. A garçonete que nos serviu tremia dos pés a cabeça. De perto era possível ver que ele tinha olhos vermelhos e a face lembrava a de um bode. Mas tinha um ar cansado. Quis saber mais de tão milenar entidade e perguntei se gostava de futebol. Se era torcedor do América do Rio, cujo símbolo era o próprio.


— Que América! Sou Flamengo e tenho uma diaba chamada Tereza! — Afirmou que os plantões na Gávea lhe davam muito serviço, principalmente no campeonato de 2010. Atender nas igrejas, nos centros espíritas, no campeonato brasileiro, nas novelas da Globo e no jornalismo em geral era asfixiante. E ainda tinha um milênio para se aposentar, no mínimo. Dei-lhe uma idéia.


— Já pensou em falar com Jesus? — Revelou que sim, mas disse que Jesus só trabalhava na semana santa e no resto do ano era com ele. Era essa a finalidade do contrato entre o céu e a terra desde o começo dos tempos. Indiquei os serviços de um bom advogado. Desanimado, afirmou que no inferno havia toneladas deles. Mero jargão eu havia dito, mas na hora a gente quer ajudar e acaba dizendo obviedades.


Terminamos o café e vimos, à porta do bar, Judas e Barrabás. Tinham cara brava. Faziam gestos de indignação. Disseram: “Temos centenas de igrejas, centros e catedrais para percorrer e senhor aí, chefe, só no cafezinho? Vergonha, hein? Preguiça é um dos setes pecados capitais!”. O chefe da camarilha limpou a boca com as mãos, deu um tapinha nas minhas costas, agradeceu, e disse que era melhor ouvir aquilo do que ser surdo, saiu. Mas quando estava atravessando os batentes do bar, perguntei sobre as seitas afro-brasileiras. Respondeu que se filiara ao Greenpeace e agora era contra o sacrifício de animais. Acenou e os outros também fizeram o mesmo. Porém, fui até a porta e perguntei, pela última vez:


— Ei, eu costumo tomar café da manhã por aqui. Já que vão passar a noite tornando o mundo mais infernal, eu pago café pra vocês aqui neste mesmo lugar. Que tal? Assim posso saciar uma série de dúvidas, coisa de sociólogo.


O Diabo tirou uma agenda do bolso e começou a ler. Coçou a cabeça e disse:


— É uma pena, mas não dá. Amanhã temos encontro com Zé Serra, ele quer ressarcimento, como cê sabe, não deu. Ele perdeu. Agora tá culpando a gente.


— Então leva um bom advogado.


— Com certeza, filho. Michel Temer.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

José Ortega & Gasset entendeu Nietzsche



O advento do homem-massa foi descrito por Ortega & Gasset
como o fim da individualidade,
como o fim da arte.
A padronização se tornou o alvo.
Querer ser igual aos outros é a meta, um anseio desesperado.
Dissolver-se na cultura pop é símbolo máximo de aceitação.
O velho e bom Nietszche dizia que a arte sem falo é corpo sem sangue.
A alma da mulher preta se perde nos cabelos lisos padrão ascensão social burguesa.
as brancas pálidas de botox cabelo liso hollywood fedem a perfume.
o cheiro da carne, do sangue, da alma, do hálito, das entranhas: insonsos!?
não há super-homens, dostoievsks, buks, lamarcas, gorks e babels.
saltar no mundo, na vertigem, sobre o abismo que separa o primata do homem.
alçar voo é a proposta da arte, é voar dentro de si-para-si-para-todos.
meu avô era italiano, meu outro avô índio-luso-mineiro.
é preciso saltar sobre esse mundo todo. voa, Zaratustra!!!!!



segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Debord: o espetáculo da indústria cultural


a indústria cultural nos faz enxergar o mundo como se fosse um espetáculo.

poucos centros emissores de produção artística.

um vasto mundo receptor dividido em classes econômicas diferenciadas.

um único padrão de arte para a diversidade humana condicionada pela consumo.

não vivemos a realidade, mas sim a imagem da realidade.

estamos em um não-mundo, com uma não-consciência.

proletários, para uni-vos, é preciso uma auto-leitura.

uma interpretação real de si mesmo.

a tv, o jornal, as escolas, as igrejas, o cinema, as eleições:

cenários de uma não-mente.




Guy Debord