Nas galerias do Hotel de Sens, no centro de Paris, está localizado o cemitério dos livros não escritos. O acesso se faz através de uma escada subterrânea, que desemboca num pátio, com teto abobadado e com afrescos que sugerem a obra de Vitor Hugo, os Miseráveis. O pintor manteve-se no anonimato, mas é nítida a influência de Miguelangelo. Acredita-se ainda que foi uma sociedade secreta, ao longo dos séculos que escondeu tais livros. Em sua maioria, livros proibidos, que jamais viram a luz dos olhos de algum leitor.
Mas voltando à nossa tour, quando se está na sala abobadada, a porta para o corredor que leva até ao cemitério dos livros fica camuflada em meio aos afrescos. Ela fica embaixo da imensa mão de João Valjeam, personagem de Victor Hugo, numa cena que faz alusão à sua prisão por ter roubado pão para matar a fome dos filhos. A porta abre com dificuldade, seu ranger ressoa por toda a sala e parece o pigarrear de Odin, resmungando porque invadiram seu Valhalla, (pronuncia-se ‘varralha’), o paraíso dos guerreiros vikings.
Ao fim do corredor escuro, com um fiapo de água que escorre no meio do caminho, e da presença de uma corrente de ar gelada, se encontra um velho sentado à mesa do século X, ele pergunta o nome do viajante, — é bom saber francês, outros idiomas ele ignora —, anota num papel e entrega uma lamparina. Por incrível que possa parecer, não se paga nada para ir ao encontro de tais livros mortos.
São imensas prateleiras, livros proibidos, perdidos. Diz uma lenda que os diários de Lênin, Trotsk, Hitler e de Jesus se encontram perdidos nos quilômetros da biblioteca. Muitos dos evangelhos apócrifos foram encontrados ali. Se você tiver sorte e conseguir conversar com o velho que permite a entrada do viajante, se ele estiver de bom humor, ele poderá lhe dizer que o cemitério dos livros não escritos foi criado no período da primeira cruzada, no século XI, pelo Papa Urbano II; sua mesa do século X é a prova cabal desse fato.
Se o viajante tiver paciência e determinação encontrará uma escada que o levará a outro subsolo, bem abaixo dos livros. Imensas salas vazias, cheias de palavras escritas nas paredes. Alguns autores foram perseguidos e jurados de morte por Instituições e governos poderosos e ali ficaram refugiados e escreveram seus livros nas paredes para que a posteridade pudesse entender o quanto a ignorância é poderosa. Latim, sânscrito, inglês, gaulês. São inúmeros os idiomas.
Todo o cemitério é uma grande metáfora sobre o fato de algumas idéias e pensamentos humanos serem obrigados a permanecer na escuridão, no subsolo, fora da luz da visão crítica. Refugiados da luz, exilados do tempo, à margem da história, natimortos, considerados uma ameaça á humanidade. É bem verdade que a realidade que desejaram transformar já não existe mais. A ignorância que comanda a realidade contemporânea é digital e polifônica, isso é fato, mas ainda faz suas vítimas.
A única ameaça à humanidade, é a própria humanidade. Mas os donos do poder têm profunda aversão às idéias progressistas, seja em que época for. Não há pensamento sem linguagem, não há linguagem sem escrita. Não há crítica sem leitura. A melhor maneira de coibir e banir a escrita, mais a leitura, é através da ação de torná-las, por demais, banais, fragmentadas, aculturadas, pasteurizadas, velocíssimamente pronunciáveis, capaz de embasar o falar sem necessidade do pensar. Muito além da pós-barbárie, quando um garoto chama uma bela amiga de “...cara, se tá ligado?!”.
O bom e velho Nietzsche dizia que o pensar depende da língua que se fala. Então atinei no internetês e nos códigos lingüísticos das redes sociais, e o horizonte sumiu diante de meus olhos. Que filosofia o futuro produzirá, com uma língua fragmentável e dissolúvel em tempo integral? O futuro prescinde de filosofia e intoxica-se com a inexorável presença do celular. Cê tá ligado?!