segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

good nigth, my friends....é hora do mundo acabar...

... Joe is dead



eu era uma criança e ouvia as histórias daqueles
que foram ao cinema assistir ao filme, Woodstock. 
Quando chegava a hora de Joe Cocker aparecer na tela
e interpretar o clássico de Lennon e McCartney, With a litle
help of my friends, com sua guitarra imaginária e seus berros de desespero
que deixavam claro que o caminho não era aquele indicado pela
geração que havia levado o mundo à guerra, nem a dos ancestrais que entenderam ser o capitalismo
a alma do homem, muitos dos malucos no cinema se levantavam, tocavam e choravam junto a 
Joe, numa cena lúdica, carregada de desejos do inconsciente coletivo 
de ser livre, longe daquela caretice toda em que América já havia se transformado.       

...silêncio, silêncio...

mas afinal, quem vai chorar primeiro?

Joe, siga em paz...


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Zen budismo + Led Zeppelin + Vinho = Férias



           Luz, eu posso ver a luz. A tarde é território luminoso. Minha casa tem paredes brancas. Eu penso que estou num lugar qualquer do mediterrâneo. O verão, ao contrário, me sugere que eu beba o vinho fresco, tinto, seco, no desenrolar das horas, no ciclo do sol sobre nossas cabeças. Olhar a árvore e sua sombra. Tem até um pássaro que chamo de Nick Drake, ela canta no mesmo tom de uma de suas canções. De repente eu voltei pra casa. Estava imerso numa nuvem de sonhos, de uma metafísica do absurdo, não menos bela, mas improdutiva.
Claro, os dias úteis, eles se foram. Livre, agora, pelo menos por um tempo. Livre, e quero dizer com isso que posso ficar comigo mesmo, pensar sem entraves, sem limitações, saborear a ironia, o deboche, beber da própria imbecilidade, das estultices, como nas cenas de uma peça escrita pelos irmãos Marx.
A solidão, a morte, a tristeza precisam descansar, não podem trabalhar o tempo todo. ‘Nada vai mudar meu mundo’. Infelizes aqueles que não ejaculam, não gozam junto a outra pessoa o sabor da vida. Mas nunca é tarde, ainda podemos fazer um piquenique, uma cesta de pão, queijo, vinho, e o azul claro do verão, como se fosse a Califórnia e seus vinhedos.
Imagino cenas cinematográficas em que posso um dia estar, e representar um papel que sou eu mesmo. Esse livre idealismo de si mesmo é como a história de uma nuvem no céu, sim tudo isso é o que a música e o vinho podem causar em mim, na medula. Um profundo sentimento de estar leve, mesmo que o corpo esteja envelhecendo e o sangue circule sob tutela da bioquímica  e a musculatura enrijeça cada vez menos para benefício do outro ser que te deseja, mas é assim a decadência, bela e refinada, democrática e companheira.
Segue assim o cortejo de nossas aspirações, elas são tolas, como os pardais que desejam o papel dos rouxinóis nos contos de fadas, e assim seguimos nossa rota, ciganos sedentários de pensamentos livres em voos à base de especulação sobre o que não entendemos.  Nada é novo sob os céus. Os poemas, as canções, tem sempre alguém que os acolhe, junto aos desenhos, frases, beijos, jeito do corpo, cristalino olhar que me alcança numa tarde qualquer. Presentes rejeitados por alguns se tornam pérolas nas mãos de outras pessoas sonhadoras.
O que mais quero da vida é esquecer os manuais que a história nos legou. Quero desaprender os mortos, os xamãs, os feiticeiros, os videntes e os filósofos. Também me afasto dos vivos comuns que acham que sou algo que não é meramente humano. Sou um menino no parque que deseja dividir o chiclete, e que é atraído como uma mariposa à luz artificial quando ouve a própria guitarra. Meu cão dança comigo enquanto o Led Zeppelin estoura nas caixas de som. São duas patas traseiras mantendo um corpo lupino que pensa ter duas mãos primatas que desejam me abraçar.  
“Somos descendentes dos primatas, logo não nos cabe alternativa senão a de nos amarmos”, e sob o sol, na chuva, na noite escura, à margem do riacho, no bosque imaginário. E data vênia, dance comigo quando eu estiver morto, o sol se foi pra sempre e baby, você pode me fazer me sentir bem, então dance, dance, dance, porque a noite veio e caiu sobre nós. Estamos felizes, é por isso que podemos dançar ao redor do fogo.
Vou fechar os olhos, não vou deixar o natal e o réveillon sugarem minha alma, são dias comuns, tais quais aqueles em que se abandona o casamento, ou em que se diz ao filho, "...não importa o DNA, você é um ser do mundo, siga em frente e deixe seus irmãos às moscas!. Abandone a Deus, também ao pai, a mãe e se agarre firme na cintura de sua namorada, e não se esqueça de sua guitarra".
          Ah! O abandono, o nada por fazer, a obra de arte, a loucura, a chapação. Eu sei, às vezes nos cercamos de idiotas, no fundo são nossas escolhas, como fazemos com CDs e livros. São eles que nos tornam o que somos, por isso tome cuidado, só escolha aquilo possa ser entendido diante da santa chama da loucura, da liberdade de embriaguez e da nudez mais despudorada que se tenha notícia.

Ps: se não foi possível entender a crônica acima, sorry. Escute então esta música, Picnic, parte da trilha do filme, Sideways, entre uma e outras e talvez você possa entender. Aliás, quero agradecer a companhia dos leitores, poucos, mais verdadeiros. É que estamos entrando em recesso, agora só em janeiro de 2015. kiss in everybody.  



               

                        


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

I'm made of dust, crumbs, illusions...


[...]
Lábios de carne.
O sangue zune.
Os ouvidos vêem Deus.
Ali ele existe.
No pré-êxtase de explodir vulcão.
A mão lisa fêmea nos bagos.
Baco! Eu sou Baco.
Dionisicamente Baco.
Ninfeta, como quero tua língua!
Belo é o crepúsculo fálico do gozo.

[...]  
Não há culpa se as coisas são tristes.
Se o modo com se abre a porta,
se enche o copo d’água e se serve a mesa o são tristes,
é porque tudo é dolorosamente feito da mesma forma,
nas engrenagens do dia-a-dia, nos dentes ácidos da monotonia,
na pasmaceira da vida morta.
Não há culpa nisso.
E se não se faz isso tudo, parece que não há vida.
É pouco o que se tem, o que se sobra.

Imersa na carne, no sangue,
os olhos da demência anunciam tristeza:
no som da campainha,
na voz ao fone,
no vidro que transpassa a luz,
no sol que aquece os pratos limpos,
na cor do carro que ainda não foi pago.
Tristeza.
Agonia.
Violão desafinado ao menor fluir da brisa.

Se eu fosse mais forte, como um cais,
cortaria os pulsos em cacos de lâmpadas,
em pontas de vasos,
em fragmentos de espelhos.
E deixaria a nau partir.

Viagem de alivio à imensidão do nada.

[...]

A lua na longa noite dos esquecidos.
Melhor ser feliz em tempo e sobre a plantação de trigo.

É lua da semana santa,
O “senhor” é morto.
É a hora da bagunça.
Ele não nos vê, assim não julga.

Queres eu da lua sonho.
Saciação.
Ardência. Serenidade. Explosão!!

Queres eu da lua minha amada.
Pele branca. Seios fartos.
Ejacular-se-ia acordes em sol.

À luz da lua, luz florestal,
luz fosca da lua,
ao bronze dos olhos pássaros,
é noite,
então beberei o vinho. 

E bêbado, Baco, tonto, verei na mariposa que rasteja no ar, 
a ninfa que acreditei um dia ter percebido em profundezas arbóreas,
na curva mansa do rio das minhas 8 vidas.   

[...]

...e Brahma dançou sozinho e extraiu sua amada do próprio corpo...



 ...e assim seguiu em paz, na beleza do silêncio...

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A consciência servil



Quando alguém passa a ter consciência sobre si mesmo se torna um campo autônomo e desejante que emerge, sem pudor, do processo histórico e prioriza o sentido de uma vida própria.  A bem do raciocínio, deve-se entender que a história é uma sucessão de fatos baseados na construção do mundo material, o espaço geográfico, e tal construção se dá em função da relação entre a consciência do ‘senhor’ com a dos 'escravos'. − Ou, em outros termos, entre as mentes investidoras com as ‘mentes’ executantes, funcionais, que subjacentes, movimentam o sistema ao obedecer a uma hierarquia de valores e a um conjunto de regras econômicas.
Esse ‘senhor’, que é sempre histórico e hoje é pós-moderno, como tem consciência própria inalienável, se torna livre e proprietário legal, virtual e cultural da liberdade. O sintoma da liberdade é a capacidade de agir e desencadear reações em função daquilo que pensou e/ou desejou sobre o mundo. Já o ‘escravo’, também histórico e pós-moderno, por sua vez, tem de abrir mão de sua própria consciência e torná-la autômata, eficiente, pronta para reagir ‘positivamente’ aos estímulos dos ‘senhores’, enquanto mantém seus sonhos e desejos nos limites da tutela da lei.
Mas entre essa massa de ‘escravos’ pós-moderna há os despertos semi-resignados que não aceitam o sistema, mas que também não o combatem com a força devida de suas potências intelectuais. Sua subversão se limita a pequenas infrações e/ou displicência recheada de atos relapsos, que lhes constituem um pequeno alívio ao pouco que ainda existe de consciência livre em suas entranhas. Há espaços na sociedade que são mais tolerantes a essas pequenas ‘licenças poéticas’ dos pseudos-subversivos versão light, e outros intolerantes ao extremo, criando uma apoteose dos conceitos ortodoxos para permear a relação entre ‘senhores’ e ‘escravos’.
Em tempos de escravidão, no Brasil, havia uma figura emblemática, o Capitão do Mato. Era um negro que caçava outros 'escravos' que fugiam em busca da liberdade e, por consequência, desejosos de ter a própria consciência. O Capitão do Mato era a personificação do 'senhor', portanto desprovido de uma existência em si mesma. Era uma (in) consciência que recebia proventos em função da capacidade e da 'qualidade' de extirpar os desejos de liberdade dos seus semelhantes.
Ainda se pode, em pleno século XXI, nas fábricas, escolas, repartições públicas, exércitos, igrejas e empresas em geral detectar a figura do Capitão do Mato. São os gerentes, os encarregados, os coordenadores, os diretores, os supervisores, os mestres, os doutores que se especializam em reproduzir o discurso do ‘senhor’ que corresponde, em suma, à concretização dos desejos dele.
Há toda uma estética nessa subserviência: o cabelo devidamente asseado, o terno e a gravata, o falso discurso progressista, a suposta posse de pensamentos objetivos e subjetivos, os conceitos embasados na certeza do saber de como as coisas devem ser feitas. São artefatos de uma metafísica: o ‘senhor’ do empreendimento está em todos os lugares, ao mesmo tempo em que não está. Sua onisciência é baseada no ‘comportamento drone’ dos capitães do mato, que como diria Foucault, somos nós todos, em tempos de apoteose do capitalismo financeiro.
Essa consciência servil se regozija quanto mais é capaz de dizer ‘não’ à massa subalterna, pois sente que tem posse sobre parte do discurso do ‘senhor’.  Os capitães do mato acreditam que o sucesso e a eficiência estão intrinsecamente ligados à capacidade de fazer as pessoas obedecerem às regras impostas. Por que se acredita que quanto mais as regras forem obedecidas, mais humanizados seremos nós? 
         Em termos práticos: certa vez vi uma diretora de uma escola pública proibir o professor de usar o ‘data show’, só porque o mesmo não estava agendado previamente, apesar de estar consciente de que ninguém iria usá-lo. Mais importante do que o desenvolvimento pedagógico dos alunos, é a regra do agendamento do ‘data show’. Que Deus abençoe a mediocridade.                               

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Desejar uma ditadura é masoquismo


          O capitalismo leva ao consumismo. O consumismo ao individualismo. O individualismo à solidão e ela, por vez, ao desespero. Os desesperados procuram as religiões. Patético, não fosse trágico. Suportar o mundo não é uma tarefa fácil. E nada mais humano do que pedir às forças que estão além de nós uma ajuda, uma mãozinha pra se mudar o destino quando nos vemos em maus lençóis. Agora o que isso tem a ver com a prática de uma postura ortodoxa, com o comportamento fundamentalista, seja de cristãos, islâmicos e/ou derivados?
Por que se acredita que somente os fanáticos podem desencadear no Ser supremo a possibilidade da misericórdia, ou de uma benção? Quem escreveu essa bobagem? Pior, quem acredita nessa bobagem? Quer dizer que Deus, dessa forma, sempre irá reagir se eu me comportar com um completo ignorante no tocante à ciência, à política e à arte, porém suficientemente ‘abestado’ para absorver todos os discursos de pastores e padres carismáticos, e praticá-los na íntegra, e assim apto a me transformar num futuro morador de uma terra prometida (?). Eis a essência do caô! Chuta que é macumba!
O mesmo ocorre na política, onde fica claro que o fanatismo é a terra dos quadrúpedes. Após as eleições pudemos perceber vários deles expostos na mídia, pedindo por uma intervenção militar no Estado brasileiro. − Alguns acreditam que se um grupo de milicos tomar o poder cessar-se-á a corrupção como num passe de mágica. De onde vem a crença em tal absurdo? Primeiro: os militares brasileiros, antropologicamente falando, são tão pilantras, honestos e indiferentes quanto a sociedade civil o é. Segundo: por que a ideia de um único grupo governando, de forma ditatorial, silenciando as críticas e questionamentos de opositores, poderia seria melhor do que nossa constante e complexa rede de discursos abastecida pelo dissenso? Terceiro: por que seria melhor só um grupo no poder que pudesse roubar, matar, reescrever a constituição a bel prazer e sucatear a história de um país? Freud explica: isso é masoquismo!
O conceito de masoquismo vem da obra do austríaco, Leopold Von Sacher-Masoch, do livro, A Vênus de Peles, onde um dos personagens atinge o orgasmo após ser surrado pelo amante da sua esposa.  Freud dizia que o masoquista deseja ser colocado na posição de objeto de alguém que seja ativo o suficiente para desgastá-lo até sua morte. Isso seria fruto de alguma culpa inconsciente que o atormente constantemente, assim sente prazer com a ideia de que será destruído e a face da Terra será poupada de sua nefasta presença.
No campo da sexualidade, acho que estamos numa sociedade suficientemente livre para aceitar que a felicidade do masoquista, quando este passa pelas mãos do sádico e sinta prazer nisso de forma particular, ocorra sem que nenhum crime seja cometido e seja algo baseado no livre arbítrio da liberdade constitucional. Aí tudo bem, sussa! Ou seja, o republicanismo aceita que os indivíduos sintam prazer em sentir dor, ou que aceitem que seus cônjuges tenham relações extraconjugais e isto até seja filmado e propagado. É uma escolha.   
Agora, querer impor isso na política é sacanagem. Sentir prazer em ser chicoteado por uma Ditadura não é algo que deva ser universalizado como modelo de Estado. Quê isso minha gente? Por isso acredito que todo fanático, seja religioso, político ou esportivo, caminha de braços dados com o masoquismo, que é também uma maneira de exterminar a própria personalidade, que de tão insuportável a si mesma imagina que os outros também o são e logo não vê problemas em tomar na ‘cabeça’. Vá de retro, Satanás! 
Em suma, como diriam os patéticos professores de redação dos cursinhos, para o fanático religioso, Deus é um vingador que sente prazer em exterminar. Logo um sádico. Eu já disse que concepções teológicas baixas, com baixos teores racionais e medíocres, transformam Deus num anão e/ou num ser patético. Assim os fanáticos neopentecostais, carismáticos e derivados são uma mescla de sadomasoquismo.  PQP! Vamos evoluir minha gente, vamos evoluir! Deus, se existe, é um ser livre.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Paul





Minhas primeiras lembranças da aldeia global são em preto e branco. O homem pisando na lua e em movimentos de câmera lenta; também havia os Beatles em seu submarino amarelo. O som era diferente do que eu ouvia no mundo ao meu redor, na casa de meus pais. Havia alegria no que faziam e achei que o mundo seria daquela maneira quando eu crescesse.
Mas eu não sabia que estava conhecendo uma esplendorosa manhã lá pelas 11hs30, já no seu final, em breve o mundo seria uma noite profunda, e isso ficaria claro com o assassinato de Lennon, em 1980. Eu já estava entrando no antigo colegial, e uma morte sem sentido, violenta e chocante havia assolado o mundo. Senti como quem estava num velório e vê a tampa do caixão da arte sendo fechada.  − Mal eu sabia que a música seria assassinada ao longo dos anos 80 e tudo resultaria em pagode, axé, sertanojo-universitário, jazz de elevador e bobagens mais. Quem poderia imaginar que chegaríamos a um ponto abaixo do piso do poço de lama no the voice ‘brasil’?
Hoje entendo a capa do LP dos Beatles, Rubber Soul, (alma de borracha). É que somos nós, os observadores da imagem, que estamos dentro caixão. A mensagem é clara: breve a tampa será fechada e uma profunda escuridão irá nos envolver. Claro, se trata do futuro, os fantasmas e monstros da geração 1960 seriam a normalidade do século XXI: guerras, armas, preconceitos, bolsonaros, trapaças, falta de privacidade, música ruim, morte da literatura e tragédias mais.
Nos anos de 1990 os Lps desapareceram, entrava em cena o CD. Comprei estoques de Lps (o antigo vinil) porque passaram a ser liquidados às baciadas. Também em 1990 meu primeiro filho havia nascido. Simultaneamente, os EUA tinham acabado de invadir o Iraque, com George-Bush-pai, e havia outra ideia de que o mundo estava prestes a findar. Que horror! Só depois entendemos que a Humanidade havia conseguido transformar a guerra em mercadoria. Elas podiam acontecer que o mundo não seria destruído, afinal, era pra isso que existia a inteligência e a tecnologia, para transformar a morte, os assassinatos em massa na mola propulsora da economia.    
Em 1993, meu segundo filho nasceu. Me lembro que estava ouvindo os vinis com o filho mais velho, enquanto o mais jovem rebento dormia; tinha deixado as capas dos LPs espalhadas no chão; eu tirava os discos de dentro das capas e os colocava sobre o piano, em cima de uma flanela, assim o projeto humano de três anos podia brincar com elas sem prejuízo maior à música.
Me lembro que havia várias capas de Lps dos Beatles, uma deles era o famoso Sargent Peppers. Meu filho pegou uma delas e disse-me algo que nunca mais me saiu da cabeça, carrego comigo com um talismã, uma pedra cheia de energia, um afeto dos deuses. Foi assim, no intervalo de uma música e outra: “pai, quando você morrer e for para o céu, pode se juntar aos Beatles!”.
Não deixei que ele visse a lágrima escorrendo. Era um choro de felicidade. Alguém puro, com voz angelical, havia visto em mim o mesmo que eu vira, quando tinha a mesma idade dele, diante da TV em preto e branco. Ele me associava aos Beatles, sem nem me conhecer direito, ou mesmo os Beatles. Mas a intuição de uma criança de três anos está mais para o inconsciente coletivo do que para a consciência racional terrena. Peguei-o em meus braços e o abracei num misto de amor e gratidão.
Segunda- feira, 10/11/2014. 23hs50. O telefone toca. Era Miguel, o filho mais velho, já na posse dos seus atuais 24 anos. Disse que havia estado comigo no domingo, mas que havia se esquecido de dizer. Na quarta-feira, 12/11, iria ao show de Paul McCartney, no Rio de Janeiro. Eu mal conseguia falar, em meio a palavras de ‘bom passeio filho’, pois uma vertigem tomou conta de mim. Minhas lembranças em preto e branco voltaram ao palco da consciência. Os Beatles, o homem na lua, depois as capas dos LPs espalhadas no chão, ele pequeno, a música rodando no aparelho de som e sua doce voz me ligando a uma música humana, demasiadamente humana, e maravilhosa. 
Senti que a vida é um eterno retorno às nossas vivências e lembranças. Depois que desliguei o telefone, sentei-me na cama e cantei silenciosamente, In my life. Não pude conter minhas lágrimas, mais uma vez. Lá ia meu filho ouvir os decibéis das caixas de som de Paul McCartney, ao vivo e em carne e osso. Era mais um afeto dos deuses pra essa vida minha chinfrim.              

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Contos absurdos: a loucura

Foi depois que conheci a loucura que entendi o papel importante das coisas mais singelas, como as fotos sobre os móveis, as imagens de aniversários gravadas nos VHS embolorados, os cachos dos cabelos dos filhos que guardamos em pequenas caixas e quando as revisitamos, eles ainda parecem novos e adormecidos, reluzem como se tivessem sido cortados ontem. Isso revela quem somos, são espelhos sem reflexos do que escolhemos ser, percorrer, tentar viver. Agora que estamos aqui, deixa a chuva molhar sem medo. Isso esconde a tristeza, e preenche o nada que nos cerca.
A loucura é um descompasso que criamos com a própria cabeça. Ela é de livre acesso, democrática, basta chamá-la que atende prontamente. Eu escrevo para não enlouquecer, se eu não tivesse a palavra e a tela em branco, provavelmente esse lixo todo ficaria circulando em minha cabeça. São resíduos que necessito expelir, são fezes racionais, elucubrações, vaidades, desabafos. Mantenho uma desconstrução contínua do ser residual que há mim e vive em eterna potência virtual e nunca será verdade, desde que seja sempre exilado pelo ato da escrita, caso contrário, ele pode me matar. Repito: preciso assassinar constantemente a mim mesmo ao expelir ideias escritas, senão acabo morto pelo monstro que brotará em mim, caso eu me silencie. Confuso? Creio que sim, mas qualquer um pode facilmente se ver dentro de algo parecido.
Mas há uma questão ética: o que escrevo para destruir meu eu residual causará reações nos outros? Aqueles que por ventura vierem a perder tempo para ler o que escrevo terão seus destinos mudados, refeitos, alterados, e/ou tudo isso junto e a responsabilidade será minha? Penso que posso me sentir responsável por essas reações nalgum dia desses e talvez me sinta importante ao ter tal sentimento. Em contrapartida, qualquer psicanalista diria que a culpa que achamos que sentimos, em função daquilo que fazemos aos outros, é só uma mistura de vaidade com uma maneira de ocupar o centro das atenções. Em suma, uma ressaca por falta de aplauso, por não saber brincar de pique esconde. Igual àquele grande momento na beira mar em que achamos melhor destruir o Castelo de Areia, por ser ele a própria contingência, e já que estarmos cientes de que logo o mar virá mesmo removê-lo de sua beleza, então o executamos antes disso. Por que, afinal de contas, somos seduzidos a destruí-lo antes da onda derradeira?
Enquanto escrevo, crio um antídoto para o Golem que anseia nascer constantemente das minhas entranhas encefálicas. E isso faz de mim alguém ético, responsável. Se eu deixar o monstro emergir do epicentro do eu ao desistir de escrever, sonhar, gozar, ter afeto, ser amado e amar e desejar construir efemeridades, tal como a morada eterna num barquinho de papel, ou imaginar-me sempre forte e invencível como os absolutos cães de seda japoneses, também eu não estaria a criar reações nos destinos alheios e desencadearia ações muito piores nos outros? Kharmas e kharmas e kharmas destilados para todos os lados nas não palavras escritas; gestos e desamores e truculências de um Golem em ato residual por falta de um desejo de sonhar os próprios sonhos. Me transformar num não sonho pode ser muito pior aos outros.  
Claro, seria loucura dizer que toda essência está centrada na manipulação dos próprios desejos. Não há nada fora do sistema porque não há sistema. O que há é uma não vida, uma não satisfação pelas pegadas na areia. Tudo é perecível e navega incessantemente para sua dissolução, mas temos olhares de deuses nos poucos segundos em que ‘vislumbramos’ nossa obra, nossa escultura de neblina. Aqueles vapores que exalam do chuveiro podem nos levar à ideia de que seria melhor morrer. Mas nada seria novo, ‘de novo’, sob o céu, pois é só mais um desejo de que a própria morte seja uma escultura de vazio e de ausência. Mesmo depois de arquitetar a própria morte e sonhar com ela, a imaginação continua atrelada ao 'o quê' as pessoas sentiriam depois de nosso mergulho no túmulo. De novo, a reação dos outros. Ad infinito. 
Sim, eu quero que os outros reajam ao que eu faço e gostem de mim e que eu seja importante porque amo, escrevo, toco e danço nas tardes de sol e chuva. E tudo isso fica muito melhor com mescalina. E eu nunca experimentei. Quem sabe, quando ficar mais velho?

sábado, 20 de setembro de 2014

Contos absurdos: o céu através da garrafa de vinho



        Bem-te-vi: Pitangus sulphuratus

Havia mais um pássaro perdido no chão. Pensei que se tratava só de um filhote de bem-te-vi, mas eram dois, solitários, lutando pela vida. Eu sabia que não iriam permanecer vivos, que não conseguiram voar! A mãe e o pai alimentaram os filhos até onde foi possível. Eu fiz o que podia, deixei de frequentar o quintal, fiquei longe da imensa árvore, a Mangifera indica, que já anunciou suas frutas de verão, a manga, a mais sexual de todas, onde se lambuza até a alma, sei que ela orou pelos filhotes e também nada pode fazer para salvar os dois. Desfolhando-se toda, a Mangifera salpicou o chão de confetes triangulares e o vento zumbiu macio em sua copa. Oh! Sidarta, a morte foi o melhor para os pássaros? Sim, a existência foi benevolente! Quem lhe disse isso? Darwin.
E foi dessa forma que pude entender que a consciência não mente, ao contrário, sabe que tem de dizer coisas ao inconsciente. E este sim, de olhos bem fechados, permanece sem saber da verdade. É que somos primatas dançando na chuva, enquanto o sol atravessa o céu e sem se importar com quem se aquece em sua força vital, advinda das explosões atômicas de suas entranhas. Quanta carne o sol já devorou? O quanto ainda poderemos nos devorar, até que o equilíbrio se desfaça e eu já não consiga mais controlar o poder de esquecer? Sidarta, o que devo fazer? Entender que as relações efêmeras têm sabores de eternidade! Tal como o desejo que tenho de que os dois bem-te-vis tivessem sobrevivido? Sim, como querer dançar aquela canção que você nunca mais ouviu porque está num vinil. Ao tocá-la, nos poucos minutos, tudo será eterno? Sim, exatamente! Sartre já disse isso! Mas ele jamais poderia saber que você se apaixonaria pelo sal da vida?
A chuva lavou a tarde. O céu transmutou-se na direção de uma escala cromática do cinza plúmbeo e eu o olhei através da garrafa de vinho. É o vinho que me fará viver mais, para que possa esperar o dia em que nada terei de fazer, a não ser, ser seu eu mesmo, e sentar-me-ei num banco sob as árvores e pensarei nas vezes que sonhei ter dançado abraçado a ela, enquanto Beck cantava que nada se poderia fazer contra as forças da Terra, e que o diabo sempre nos seguiu de perto, ansioso pra alcançar seu quinhão. Então ele saberá que o mantive longe graças às palavras de Singer.
Olhei a imagem mediterrânea do filme sobre a ilha do esquecimento. O lugar de onde eu vim. Sempre que o vejo, sinto que estou impregnado daquela paisagem, como se não pudesse estar em outro lugar, senão naquele chão. Fui um gladiador, um césar, um senador, alguém da plebe, o leão que devorava cristãos, os próprios cristãos estraçalhados na Roma carnívora. Fui também o antes, o Odisseu, a Tróia, um dos filósofos que negaram a deus ao declarar amor a Terra; também sei das prostitutas do caís de Atenas. E é esta parte que faz você mais gostar de mim. Mas devo dizer que Sidarta não concorda. Por que, meu príncipe? Quando um homem puder sentir o amor, tal como uma mulher, será então um deus! E eu sou apenas...?! ...apenas uma lata de lixo ocidental. 
Cat Stevens desenhou uma lata de lixo na capa de um de seus LPs. Depois foi internado. Precisava se desintoxicar. Nunca mais foi o mesmo. O que faremos, Beck? Tomaremos vinho como desejou Epicuro. Ei, Sidarta, está servido?

aos poucos, mas maravilhosos leitores desse blog, agradeço e peço desculpas pela fixação com os mesmos temas: Sidarta, Beck, o amor, a ilusão e o destino que, não existindo, é sempre presente. É que não consigo parar de ouvir: nobody's fault but my own, do bom e velho Beck, que fala da existência, seu sentido, do diabo em cada um de nós e que não é culpa de ninguém. O que seria de nós sem o eu-lírico? Abraços!     

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Contos absurdos: O doce canto da liberdade

                     


O rei de uma terra distante havia conseguido a mão de uma bela princesa. O casamento fora festivo, mas os olhos da noiva, agora que se tornara uma rainha, eram tristes. Foi levada ao seu novo reino por um cortejo dourado. O castelo de seu esposo era cercado por florestas e todo o vilarejo se ajoelhou para a passagem dos nobres. Mas à noite, a rainha disse que não poderia se deitar com o rei, tinha os nervos abalados, precisava adormecer profundamente. Dessa forma, necessitava urgentemente de silêncio. É que sem descanso, não poderia desposá-lo.
Noutro dia, feito um cavalo puro sangue na ponta dos cascos, o rei ordenou que todo o castelo ficasse em silêncio, a rainha precisava dormir para que ele pudesse ter sua lua-de-mel. Fez-se um silêncio nas entranhas de pedra. Mas a rainha disse que só no castelo o silêncio era pouco, os pássaros na floresta não a deixavam dormir, principalmente à noite.
Assim foi dada outra ordem: que todos os pássaros fossem mortos, caçados, vendidos, exilados, mandados para terras distantes, o sono da rainha não poderia ser atrapalhado. Mas ainda não foi o suficiente, a rainha disse que o barulho do vilarejo, agora com tanto silêncio no castelo e na floresta, produzia um ‘zum-zum-zum’ forte por demais que não a deixava dormir. O rei era implacável e não desistia.
"Um guarda em cada porta, se preciso for, para manter o silêncio!', ordenou o rei para que a princesa pudesse dormir e ele, dessa forma, pudesse vir a amá-la. O rei era um homem forte, seu peito era peludo, sua barriga pronunciava uma farta alimentação de carne. Seu hálito misturava faisão, vinho, cerveja e pimenta. Seu pai fora um rei viking. Por isso, talvez, a princesa, segundo diziam as mulheres da corte, estava retardando por demais as núpcias.
Em segredo a rainha sentia-se enojada toda vez que via o rei. Queria algo mais carinhoso, mais singelo, que lhe tocasse a pele como o vento da manhã, como a delicadeza da água da floresta, igual à maciez dos lençóis de seda.
'Controlado' o vilarejo, o rei perguntou se agora havia silêncio o suficiente no reino para que ela pudesse se deitar, finalmente, com ele. Ainda não! Agora era o vento nas folhagens que produziam barulho. Parecia um chocalho gigante, ela precisava de silêncio senão não poderia entregar-lhe o corpo branco como o leite, os cabelos claros como o trigo, os seios duros e pontudos e apontados pro céu. Só de imaginar o rei entrou em ebulição. Mandou cortar as árvores ao redor do castelo, queria uma clareira de quilômetros para que a rainha não ouvisse mais o barulho do vento nas folhagens.
Após as árvores cortadas, o silêncio era tão profundo que muitos habitantes do reino entraram em depressão. Alguns cometeram suicídio. O rei, orgulhoso de sua obra, postou-se diante de sua rainha e queria saber se agora poderiam se amar. A rainha disse que quase tudo estava bom, mas ela ainda ouvia o coração dele ecoando dentro do peito. Aquele Tum! Tum! Tum! era sufocante. O rei deveria procurar um feiticeiro, um que a rainha trouxera de seu antigo reino, e que fora alojado nos porões do castelo. Ele conhecia uma poção que fazia o coração bater sem fazer barulho.
O rei desceu as escadas com toda a sofreguidão do mundo. Deu ordens ao feiticeiro que lhe desse a poção. Nem quis ouvir sobre o fato de que nunca tinha sido experimentada. Que aquela fosse a primeira e não se falava mais no assunto. Com o frasco nas mãos, o rei subiu as escadas e de joelhos, diante de sua rainha, tomou a poção. Depois se deitou na cama e indicou o peito, o coração agora não fazia mais barulho.
A rainha, agora sim, disse que havia silêncio o suficiente. Só então o rei entendeu que estava prestes a morrer. Sentiu uma dor extrema no peito e fechou os olhos. A última imagem que levou do mundo foi a do rosto de sua rainha. Ela estava sorrindo, rodeada por um silêncio profundo. 
Com o rei morto, a rainha desceu as escadas, chegou até as baias e pegou o melhor cavalo. Cruzou todo reino de seu falecido esposo e, depois de dias cavalgando solitariamente, parou diante de uma cachoeira no meio de uma distante floresta. Um trovador a esperava com o violão em mãos. Ela jogou fora a coroa que tinha e ele cantou pra ela uma canção antiga. Ficaram olhando as estrelas, sentados nas pedras, e em meio ao canto dos pássaros noturnos. Até que de repente, ele a beijou nos lábios e a tocou sob o vestido. Havia uma leve música no mundo todo. Podia-se ouvir os corações dos dois. Acelerados e na mesma frequência.

sábado, 13 de setembro de 2014

Contos absurdos: o gosto irremediável do fim



À noite fui assombrado por maus pensamentos. O sono parecia uma película inacabada que não saía do lugar. No fundo da Terra o magma mantinha sua incandescência e o sol, distante, soprava sua radiação na clara noite lunar. Entre o magma e o sol, dois calores profundos, eu, sobre a superfície do mundo, com o coração frio, atinei no espanto. As únicas coisas que me acalmaram foram as equalizações de Beck, todas feitas em Saturno, diria alguém mais sábio. E como um verme sobre a maça, caminhei de coração parado. A lua era só um espelho que refletia a luz do sol.
Os animais dormiam e me lembrei que vivo cercado pela idiotice acadêmica, pelo princípio do não pensar, do sentir-se num escafandro de escuridão. Melhor se virar e seguir em frente nesse mundo circular em que eu sempre volto ao mesmo ponto e não posso desistir dele. Olhei no espelho e vi que meus lóbulos cerebrais funcionavam como engrenagens, minhas mãos calçavam luvas metálicas para construir a patologia certificada do mundo; minhas palavras eram um gráfico cartesiano medonho cheio de uma perspectiva que não era a minha.
Dançar sozinho à noite, longe dos olhos do mundo, procurando no inefável a solução que não existe, é o que se pode fazer quando o coração é frio. A ausência de deus é onisciente, queria lhe dizer coisas, mas ele não sabe nem mesmo usar as libras; a árvore deixou cair uma folha, queria me dizer algo; um ser tão perecível quanto eu. Pedi-lhe perdão por tê-la ignorado e pensado num suposto ser perfeito que não é, e que vive se escondendo na luz e/ou na escuridão profunda de minha mente.
Sinto o gosto irremediável do fim e devo me curvar a ele, como faria um balseiro, ou mesmo Buda, quando entende que nada se pode fazer sobre o mundo, porque de tão transitório que é, se torna essencialmente uma vertigem num abraço de eternidade nos acordes do meu violão. Eis meu espelho, minhas cordas estrelares, a mutação do nada que vai até o mais profundo dos vazios. Penso nos retratos dos filhos em preto e branco nalgum lugar do parque de diversões, onde no céu não havia cometa algum. Minha boca ficou seca como o Mojave, muito além do gosto do algodão doce.
Me sentei às margens do rio e pedi tigelas de arroz às pessoas do mundo, àquelas mergulhadas em afazeres descartáveis. Pensei em todas as moedas que neguei aos miseráveis da Terra. Uma dor cortou minhas vísceras. Eu tinha negado coisas a mim mesmo. Me deparei com homens vestidos de ternos e que só falavam de negócios e religiões, de apocalipses e julgamentos e de quanto o diabo devoraria meus ossos. Mas não sou um espírito?
A carne passa, o dirigível passa, o sorriso da moça passa, amarela e se torna uma passagem pra lugar nenhum. Ah! O destino que não existe, mas que passa a ocupar o sentido das trilhas que não controlamos, como ao olhar o jardim e contar as folhas e dizer que aquela, especificamente aquela, estava fadada a ser o número 999. E não poderia ser de outra forma, porque estava escrito nas estrelas, até em algumas que nem mais existem.
Vi uma velha mulher pegar uma folha seca no chão. O pato navegava livre pelo lago circular e limitado de tempo e espaço. As ondas na água eram o momento em que tempo e espaço se acasalavam diante de meus olhos que, segundo a segundo, se desligavam do mundo. Eis só mais uma forma de sentir o fim, o irremediável fim que está por vir nas ondas digitais do mundo ao qual não pertenço. Quanto menos me entrego ao desejos estoicos da vida, mais vivo me sinto e mais vezes danço com a morte de rosto colado, enquanto Beck canta que não há porque sentir medo, as histórias humanas não significam nada. Até menos um pouco. É que essa noite fui assombrado por maus pensamentos e por isso estou tão otimista. 
Sob um céu doentiamente azul do dia seguinte, a música rolou suave. O vento ressecou as frestas da pele, as árvores polinizavam livremente e a água se preparava para cair. Ao longe não via anjos e nem demônios voando livres no céu. Fluíam no vento alto com tanta arte e sem nenhum compromisso com a realidade, os abutres, os urubus, as rapinas da podridão, como se dissessem: Morra em paz, estamos aqui para nadificar você.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Contos absurdos: A festa




A festa já havia alcançado aquele limiar em que o próximo passo era o trágico. Em algum lugar uma torneira inundava o chão, as pessoas já não dançavam mais, apenas curtiam os pés estalando na água, papéis desmanchavam em papas, alguém iniciara uma guerra de tomates e o pequeno apartamento ia sendo melecado junto a um volume estridente de risadas. Enfim, era a hora de partir.
Jack desceu escorado pelas paredes, a escada não era assim ‘tão difícil’. Manteve o cigarro na boca, 'entendia' que enquanto pudesse retê-lo entre lábios, logo teria condições de andar 'normalmente'. Chegou a questionar se estava aceso ou apagado, mas saber isso naquele momento, não lhe traria benefício racional nenhum. Pessoas subiam e desciam, parecia o metrô, mas aonde iriam àquela hora?
Milagrosamente chegou ao patamar. Agora só faltava um andar. Viu uma senhora com lenço cobrindo bobs gigantescos na cabeça. Ela tinha um vestido estampado, parecia a bandeira do Havaí. Como seria a bandeira do Havaí? Melhor acenar. Olhou pra ela e até achou que se estivesse um pouco 'mais alto', a coroa daria um bom caldo. Mas ela bateu a porta junto de um sonoro palavrão. Só depois ele entendeu que a festa ocorria sobre o apartamento dela.
Finalmente, no térreo, alcançou a porta da rua. Ventava muito, pelo menos parecia. Foi até a esquina e sentou-se num ponto de ônibus. Conversou com a lata de lixo. Falou sobre Victor Hugo, Emile Zola, Fellini, Celine e Marcel Duchamp. Não sabia nada sobre Duchamp, mas a lata de lixo não se importou. Desistiu da conversa quando a lata achou que poderia contar sua vida, suas desilusões, seu renascimento numa igreja qualquer onde falavam de Abraão, Moisés e Cristo.
Entrou no primeiro ônibus que parou. Não importava o destino. Sentou-se ao lado de uma mulher, quase da sua idade. Ela virou o rosto. O ônibus partiu. Ele colocou a mão no meio das pernas dela, na altura dos joelhos. Um tapa estalou em sua cara. Ele se assustou: Ei, não acha que está na hora de discutirmos nossa relação? Vagabundo, nunca te vi na vida? Estamos só nós dois nesse quarto de hotel, QUALÉ?! Gambá fedorento! Ei, Linda, vamos nos beijar...igual no colegial? Meu nome é Vilma! Amore mio!  
Os outros passageiros ouviram mais um tapa. Antes que o motorista dissesse alguma coisa, pediram para que ela mudasse de lugar. Ela passou por ele pisando em seus pés na busca por outro banco. As pessoas riam: Ei, Linda, isso é um divórcio? Se dependesse de mim seria um velório? Hã? O seu velório! Ei, quanta violência!
Jack nunca soube dizer por que desceu num ponto da praia. O sol estava nascendo. Resolveu caminhar na areia. Viu pessoas correndo, outras meditando, outras namorando e alguns bêbados dormindo ao léu. Resolveu dormir também. Deitou-se ao lado de seus semelhantes e ouviu rumores, burburinhos. ‘Monólogos debates’ que ainda perduravam. Então confessou: Moçada, nunca soube que em minha cidade tivesse praia! 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Contos absurdos: O quadro



O marchand da galeria Degas estava embalando a última aquisição de Amadeo, um freguês assíduo, que observava as outras obras com ar alvissareiro. Sua bengala girava feliz e cortava o ar com elegância. Mas ninguém imaginaria que ele se depararia, assim, de repente, com um quadro de uma mulher nua e em tamanho natural. Nada de anormal não fosse a mulher retratada, sua esposa, nua em pelo. A palavra adultério tomou-lhe a alma de assalto.
Cada vez que olhava o quadro, mais escuro se tornava o mundo. Não era só a precisão do rosto, mas até a marca no seio esquerdo era a mesma. O corpo da esposa exposto em tamanho natural, em plena galeria, era uma punhalada. Sua intimidade estava aos olhos de todos. Um escárnio. Foi falar com o marchand, aquilo tinha que ter uma explicação: Adamo, quem é o autor daquele corpo nu em tamanho natural, ali naquela sala? Oh! Sr. Amadeo, o senhor não perde o faro, é belíssimo, mas é um anônimo, imagina, em pleno século 21!
Amadeo se controlou, mas acabou por oferecer uma boa gorjeta ao marchand em troca de informação: A única coisa que sei é o nome do antigo proprietário, Adorno, posso lhe dar o endereço se quiser? Sim, Adamo, eu preciso, quero saber sobre o pintor.
No carro Amadeo deu o endereço ao motorista. Era numa cidade nos arredores. Isso facilitaria sua busca. O antigo proprietário poderia lhe dar informações mais precisas. A ideia de que sua esposa, a bela Lisa, fosse amante de um pintor o consumia por dentro. Não havia outro motivo para pousar nua, a não ser num romance. Pensava na honra, na raiva e num revólver.
Montalbán tinha poucos habitantes. Em poucos minutos o carro de Amadeo parou diante do endereço indicado. Era uma bela casa com uma escada que Amadeo subiu com dificuldade. Bateu na porta da mansão que logo foi aberta. Parecia sua própria casa.
O homem que apareceu se apresentou como advogado: Meu nome é Millinton, em que posso lhe ser útil? Gostaria de falar com o proprietário da casa. Isso não vai ser possível, ele morreu. Como? Bem, isso é difícil de dizer a um estranho, sou do banco, toda a propriedade foi confiscada, ao que parece, estamos diante de um crime. Um crime? A esposa está presa, acusada de assassinar o marido para receber o seguro. Ela forjou um acidente? Não, envenenamento. Que horror! Descobrimos que ela é a amante de um pintor, pousou nua para ele. É por isso vim até aqui, vi na Galeria Degas parte do acervo do dono da casa, queria saber onde havia conseguido suas obras. Estamos vendendo os bens da casa, a hipoteca era grande, sabe como é, negócios são negócios! Mas diga-me, quando ocorreu o crime? Um mês, mais ou menos.
O Advogado indicou um salão onde havia mais quadros, queria ser gentil, mas foi cumprir outras tarefas. Amadeo tranquilizara-se. Sua Lisa estava em casa, não na cadeia. Deveria ser uma coincidência, ou na pior das hipóteses, Lisa tinha uma irmã gêmea. Intimamente começou a rir da situação, mas isso durou pouco. Acima da lareira estava o quadro de Adorno, uma cópia fiel do próprio Amadeo. Sentiu uma leve vertigem. Estava diante da própria imagem, a diferença era que não tinha a barba. Isso talvez tivesse impedido o advogado de o acusar de ser Adorno, um fantasma trapaceiro. Era melhor sair dali logo.
No trajeto de volta ia pensando na história toda. Uma sósia da esposa que era amante de um pintor e que matara um sósia seu para ganhar uma bolada do seguro. A vertigem continuava. Resolveu ligar para casa, a voz Lisa, com certeza, o acalmaria. Mas quem atendeu foi o mordomo: Lisa não está, senhor! Mas aonde ela foi? Disse que iria prestigiar a exposição de um jovem e talentoso pintor que conheceu há pouco. Ok, Max, obrigado. 
Amadeo sentia algo de trágico sobre o corpo. Chegou à sua casa e manteve-se em silêncio. Passou a maior parte do tempo pensando no que iria fazer. Resolveu esperar Lisa no bar da mansão. Ela chegou só ao fim da tarde. Sorria muito e anunciou ao marido que havia descoberto um talento das artes plásticas. Amadeo mostrou-se interessado, sorriu, indicou seu lugar à mesa e disse ao mordomo: Max, traga aquele chá especial para minha esposa.     

sábado, 6 de setembro de 2014

Contos absurdos: O Vilarejo




Edgar, ainda com o gosto do pão da manhã na boca, atinou para aquele fato quase que metafísico, é que em seu vilarejo, Havel, entre a montanha e o mar, nunca ninguém havia sido assassinado. Um lugar esquecido pelo Diabo. Mal limpou a boca e saiu aflito em direção à rua, sua xícara permaneceu exalando a fumaça provinda do calor do leite.
Na barbearia relatou a Ferdinand sua descoberta. Com a navalha na mão, o barbeiro viu a luz elétrica refletida no fio da lâmina e pensou em silêncio, como se ainda processasse aquela informação trazida ainda sob os primeiros hálitos da manhã, “...me faltou só um pouco de coragem!”. Mas em seguida manteve a postura de assombro com a novidade: Então, Edgar, quer dizer que não há entre nós um assassino? Exato, e isso está me causando um certo estranhamento, nós nunca nos matamos! Sinceramente não sei o que pensar e ainda mais pela manhã! Bem, nesse caso, deixe-me ir, vou procurar padre Orson. Que seja, até porque lá vem o meu primeiro freguês.
Na igreja, padre Orson ouviu cabisbaixo. Talvez rememorizasse confissões, procurasse limites, ou quem sabe também fora mordido pela mesma intrigante constatação de Edgar, a de que Havel era uma terra sem assassinos. Acabaram caminhando até ao cemitério atrás da igreja. Diante das lápides, viram os nomes comuns de pessoas comuns, que morreram corroídas pelo tempo e muito pouco se lembrava delas: Mas padre, não é estranho que estejam mortos sem deixar lembranças significativas?! Você quer dizer que eles simplesmente passaram pela vida?! Sim! Mas isso não seria bom? Creio que sim! Então por que isso o está incomodando? Não sei. Posso dizer que agora passou a me incomodar também.
Intrigado e sem respostas, Edgar se despediu do padre e seguiu até o jornal do vilarejo. Oscar, o editor, lhe deu o catálogo com todas as primeiras páginas do jornal organizadas em ordem cronológica. Não havia uma manchete que burlasse a rotina dos fatos. O mais grave fora um acidente com um barco num inverno há alguns anos. Oscar coçou a cabeça, mergulhou na mesma frequência sombria em que Edgar se encontrava e disse: Nunca tinha pensado nisso, nenhum de nós é um assassino, ou tem na família alguém do tipo. Não acha isso estranho, Oscar? Creio que sim, mas acho que muitos diriam que isso é sinônimo de felicidade. Então por que saber disso me joga numa agonia asfixiante? Não sei dizer.
Sete dias depois, à noite, no encontro semanal do conselho de Havel, todos se olhavam assustados, entre eles, afinal, não havia um assassino, ou mesmo um ancestral criminoso. A dúvida de Edgar correra o mundo. Por mais que quisessem discutir assuntos de relevância administrativa, não conseguiam esquecer os assassinatos que nunca ocorreram. Por que eram tão diferentes?
À porta do salão do conselho, ao fim da sessão, Edgar conversou com médico da cidade, o Dr. Isaac: Não sei se isso é um sintoma, talvez seja só obra do acaso, somada a uma baixa probabilidade de ocorrências de conflitos! Ou melhor, doutor, que dezenas, centenas de assassinatos ocorreram simbolicamente, psicologicamente, num ambiente privado e sigiloso da mente! Provavelmente isso tenha acontecido. Então o senhor e o padre Orson sabem quem são os nossos assassinos virtuais? Isso eu não posso afirmar, não sou um psicólogo e mesmo que fosse não poderia dizê-lo.
Edgar voltou pra sua casa, naquela noite, com um profundo sentimento de frustração. Setes dias haviam se passado, tempo suficiente para se criar o universo e descansar a posteriori, mas ele ainda não tinha a resposta para a ausência histórica de assassinatos. Em sua varanda, na cadeira de balaço, ficou olhando o mar; sua casa era afastada. Adormeceu e não ouviu os passos no piso de madeira. Despertou de um sonho onde era uma criança com o metal gelado da faca entrando em sua garganta. Uma mão pesada tapou-lhe a boca e seu grito ficou contido enquanto morria com o sangue escorrendo intensamente. 
O carteiro o encontrou pela manhã e chamou o delegado; logo uma multidão se postou diante de sua casa. No seu velório não disseram nada. O padre mal fez a benção. Em sua lápide foi escrito somente seu nome, a data de nascimento e a da morte. E o jornal local não publicou nada, nem mesmo no obituário..