quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Paul





Minhas primeiras lembranças da aldeia global são em preto e branco. O homem pisando na lua e em movimentos de câmera lenta; também havia os Beatles em seu submarino amarelo. O som era diferente do que eu ouvia no mundo ao meu redor, na casa de meus pais. Havia alegria no que faziam e achei que o mundo seria daquela maneira quando eu crescesse.
Mas eu não sabia que estava conhecendo uma esplendorosa manhã lá pelas 11hs30, já no seu final, em breve o mundo seria uma noite profunda, e isso ficaria claro com o assassinato de Lennon, em 1980. Eu já estava entrando no antigo colegial, e uma morte sem sentido, violenta e chocante havia assolado o mundo. Senti como quem estava num velório e vê a tampa do caixão da arte sendo fechada.  − Mal eu sabia que a música seria assassinada ao longo dos anos 80 e tudo resultaria em pagode, axé, sertanojo-universitário, jazz de elevador e bobagens mais. Quem poderia imaginar que chegaríamos a um ponto abaixo do piso do poço de lama no the voice ‘brasil’?
Hoje entendo a capa do LP dos Beatles, Rubber Soul, (alma de borracha). É que somos nós, os observadores da imagem, que estamos dentro caixão. A mensagem é clara: breve a tampa será fechada e uma profunda escuridão irá nos envolver. Claro, se trata do futuro, os fantasmas e monstros da geração 1960 seriam a normalidade do século XXI: guerras, armas, preconceitos, bolsonaros, trapaças, falta de privacidade, música ruim, morte da literatura e tragédias mais.
Nos anos de 1990 os Lps desapareceram, entrava em cena o CD. Comprei estoques de Lps (o antigo vinil) porque passaram a ser liquidados às baciadas. Também em 1990 meu primeiro filho havia nascido. Simultaneamente, os EUA tinham acabado de invadir o Iraque, com George-Bush-pai, e havia outra ideia de que o mundo estava prestes a findar. Que horror! Só depois entendemos que a Humanidade havia conseguido transformar a guerra em mercadoria. Elas podiam acontecer que o mundo não seria destruído, afinal, era pra isso que existia a inteligência e a tecnologia, para transformar a morte, os assassinatos em massa na mola propulsora da economia.    
Em 1993, meu segundo filho nasceu. Me lembro que estava ouvindo os vinis com o filho mais velho, enquanto o mais jovem rebento dormia; tinha deixado as capas dos LPs espalhadas no chão; eu tirava os discos de dentro das capas e os colocava sobre o piano, em cima de uma flanela, assim o projeto humano de três anos podia brincar com elas sem prejuízo maior à música.
Me lembro que havia várias capas de Lps dos Beatles, uma deles era o famoso Sargent Peppers. Meu filho pegou uma delas e disse-me algo que nunca mais me saiu da cabeça, carrego comigo com um talismã, uma pedra cheia de energia, um afeto dos deuses. Foi assim, no intervalo de uma música e outra: “pai, quando você morrer e for para o céu, pode se juntar aos Beatles!”.
Não deixei que ele visse a lágrima escorrendo. Era um choro de felicidade. Alguém puro, com voz angelical, havia visto em mim o mesmo que eu vira, quando tinha a mesma idade dele, diante da TV em preto e branco. Ele me associava aos Beatles, sem nem me conhecer direito, ou mesmo os Beatles. Mas a intuição de uma criança de três anos está mais para o inconsciente coletivo do que para a consciência racional terrena. Peguei-o em meus braços e o abracei num misto de amor e gratidão.
Segunda- feira, 10/11/2014. 23hs50. O telefone toca. Era Miguel, o filho mais velho, já na posse dos seus atuais 24 anos. Disse que havia estado comigo no domingo, mas que havia se esquecido de dizer. Na quarta-feira, 12/11, iria ao show de Paul McCartney, no Rio de Janeiro. Eu mal conseguia falar, em meio a palavras de ‘bom passeio filho’, pois uma vertigem tomou conta de mim. Minhas lembranças em preto e branco voltaram ao palco da consciência. Os Beatles, o homem na lua, depois as capas dos LPs espalhadas no chão, ele pequeno, a música rodando no aparelho de som e sua doce voz me ligando a uma música humana, demasiadamente humana, e maravilhosa. 
Senti que a vida é um eterno retorno às nossas vivências e lembranças. Depois que desliguei o telefone, sentei-me na cama e cantei silenciosamente, In my life. Não pude conter minhas lágrimas, mais uma vez. Lá ia meu filho ouvir os decibéis das caixas de som de Paul McCartney, ao vivo e em carne e osso. Era mais um afeto dos deuses pra essa vida minha chinfrim.