Minhas primeiras lembranças da aldeia global são em
preto e branco. O homem pisando na lua e em movimentos de câmera lenta; também
havia os Beatles em seu submarino amarelo. O som era diferente do que eu ouvia
no mundo ao meu redor, na casa de meus pais. Havia alegria no que faziam e
achei que o mundo seria daquela maneira quando eu crescesse.
Mas eu não sabia que estava conhecendo uma esplendorosa
manhã lá pelas 11hs30, já no seu final, em breve o mundo seria uma noite
profunda, e isso ficaria claro com o assassinato de Lennon, em 1980. Eu já
estava entrando no antigo colegial, e uma morte sem sentido, violenta e
chocante havia assolado o mundo. Senti como quem estava num velório e vê a
tampa do caixão da arte sendo fechada. −
Mal eu sabia que a música seria assassinada ao longo dos anos 80 e tudo
resultaria em pagode, axé, sertanojo-universitário, jazz de elevador e bobagens
mais. Quem poderia imaginar que chegaríamos a um ponto abaixo do piso do poço
de lama no the voice ‘brasil’?
Hoje entendo a capa do LP dos Beatles, Rubber Soul, (alma
de borracha). É que somos nós, os observadores da imagem, que estamos dentro
caixão. A mensagem é clara: breve a tampa será fechada e uma profunda escuridão
irá nos envolver. Claro, se trata do futuro, os fantasmas e monstros da geração
1960 seriam a normalidade do século XXI: guerras, armas, preconceitos,
bolsonaros, trapaças, falta de privacidade, música ruim, morte da literatura e
tragédias mais.
Nos anos de 1990 os Lps desapareceram, entrava em
cena o CD. Comprei estoques de Lps (o antigo vinil) porque passaram a ser
liquidados às baciadas. Também em 1990 meu primeiro filho havia nascido. Simultaneamente,
os EUA tinham acabado de invadir o Iraque, com George-Bush-pai, e havia outra
ideia de que o mundo estava prestes a findar. Que horror! Só depois entendemos
que a Humanidade havia conseguido transformar a guerra em mercadoria. Elas podiam
acontecer que o mundo não seria destruído, afinal, era pra isso que existia a
inteligência e a tecnologia, para transformar a morte, os assassinatos em massa
na mola propulsora da economia.
Em 1993, meu segundo filho nasceu. Me lembro que estava
ouvindo os vinis com o filho mais velho, enquanto o mais jovem rebento dormia; tinha
deixado as capas dos LPs espalhadas no chão; eu tirava os discos de dentro das
capas e os colocava sobre o piano, em cima de uma flanela, assim o projeto
humano de três anos podia brincar com elas sem prejuízo maior à música.
Me lembro que havia várias capas de Lps dos Beatles,
uma deles era o famoso Sargent Peppers. Meu filho pegou uma delas e disse-me
algo que nunca mais me saiu da cabeça, carrego comigo com um talismã, uma pedra
cheia de energia, um afeto dos deuses. Foi assim, no intervalo de uma música e
outra: “pai, quando você morrer e for para o céu, pode se juntar aos Beatles!”.
Não deixei que ele visse a lágrima escorrendo. Era um
choro de felicidade. Alguém puro, com voz angelical, havia visto em mim o mesmo
que eu vira, quando tinha a mesma idade dele, diante da TV em preto e branco. Ele
me associava aos Beatles, sem nem me conhecer direito, ou mesmo os Beatles. Mas a
intuição de uma criança de três anos está mais para o inconsciente coletivo do
que para a consciência racional terrena. Peguei-o em meus braços e o abracei
num misto de amor e gratidão.
Segunda- feira, 10/11/2014. 23hs50. O telefone toca.
Era Miguel, o filho mais velho, já na posse dos seus atuais 24 anos. Disse que
havia estado comigo no domingo, mas que havia se esquecido de dizer. Na quarta-feira,
12/11, iria ao show de Paul McCartney, no Rio de Janeiro. Eu mal conseguia falar,
em meio a palavras de ‘bom passeio filho’, pois uma vertigem tomou conta de
mim. Minhas lembranças em preto e branco voltaram ao palco da consciência. Os
Beatles, o homem na lua, depois as capas dos LPs espalhadas no chão, ele
pequeno, a música rodando no aparelho de som e sua doce voz me ligando a uma
música humana, demasiadamente humana, e maravilhosa.
Senti que a vida é um eterno retorno às nossas
vivências e lembranças. Depois que desliguei o telefone, sentei-me na cama e
cantei silenciosamente, In my life. Não pude conter minhas lágrimas, mais uma
vez. Lá ia meu filho ouvir os decibéis das caixas de som de Paul McCartney, ao
vivo e em carne e osso. Era mais um afeto dos deuses pra essa vida minha
chinfrim.