sexta-feira, 27 de maio de 2016

A era da inércia


I - A inércia   

Nunca o momento, o instante no cotidiano, foi tão dilatado e alimentado por um continuísmo vigoroso; é a epifania da  efemeridade. Esse momento, esse pequeno espaço entre passado e presente, é a própria definição do mundo pós-moderno em sua essência. É pra esse instante glorificado pelo consumo, que renasce a cada instante nas redes sociais, que devemos direcionar e re-direcionar nossas vidas. É nesse espaço-tempo que nosso mundo deve ser sempre forjado e re-formatado, além de continuamente cultuado, com suas sobreposições de infinitas texturas superficiais descontinuadas o suficiente para impedir uma visão crítica sobre o processo como um todo. 
        A dinâmica de tal processo ocorre mais por sua desconexão com a historicidade, do que para uma epifania de libertação da Humanidade das ideologias do por vir, o que sempre foi uma proposta teológica inocente do cristianismo, que além de propagar o altruísmo, propunha o "olhar os lírios do campo e não a  preocupação com o amanhã!". Eis uma profunda divergência com o capitalismo especulativo pós-moderno: o lucro que habita o futuro, o vir a ser da mais valia. 
      A crítica a esse espaço 'vital' e abrangente da pós-modernidade, que mais se assemelha a veiculação de desejos de consumidores do que a expressão pertinente de uma pensamento político e questionador, engendrados por indivíduos singulares, é algo descartável e arcaica. Mais consumo e auto-venereção em selfies e menos pensamento histórico e análises estéticas é a síntese. Vender e se vender e ser consumido sem se preocupar com o design.     
Dançamos entorpecidos pela vaidade da ideia que fazemos de nós mesmos, aptos a esse mundo de consumo-expressão-digital & redes sociais, no qual nos vemos envoltos, somada à visão, ou visões, que os outros podem ter sobre nós. Deslocamos nossa 'essência', primeiramente, na história, para o espelho; depois, em tempos atuais, ao perfil das redes sociais e finalmente ela se territorializa, se é que é possível tal termo, nos breves comentários que recebemos dos outros viajantes do eterno presente dessas redes.
Produzimos esse auto-feitiço-narciso porque perdemos a noção da necessidade histórica da produção coletiva. A maneira e as necessidades como as sociedades produzem seus bens se relaciona diretamente com a expressão cultural, quando, nalguns casos, ambos formaram a mesma coisa, a mesma arte. Produção e processo cultural sem lacunas, sem distanciamentos e deslocamentos diametrais, claro, coube mais às culturas da antiguidade e às sociedades dos séculos XIX e parte do século XX. Essa intrínseca relação é perceptível em Balzac, em seu livro, A Comédia Humana, onde o escritor elaborou sua trama com base nos hábitos de trabalho do comerciante de tecidos, Guilaume de Chevrel, e nos romances de suas filhas; seu poder sobre o desenrolar dos fatos, da vida das gerações mais novas e de seus funcionários, a presença da arte nos quadros de um jovem pintor apaixonado por uma de suas filhas. A mente social coletiva, questionável ou não em seus valores, difere em gênero, número e grau do que vivemos hoje. Os antigos gregos, por sua vez, não separavam técnica, tecnologia do conceito de arte.
Na pós-modernidade medimos o tempo através dos bens de consumo que deixaremos de usar e também por meio daqueles que estão para ser adquiridos. Bilhões de consumidores sabem, ou aspiram, em qual roupa estarão vestidos na próxima estação, pois isso os definirá como inclusos no mundo aparente e superficialmente arquitetado para uma conexão digital continuamente desconectada da história e observada à exaustão pelos internautas, aos quais é necessário uma conexão-desconexa, executada numa exibição continua aos olhares desses outros sobre nós mesmos. Eis a sobreposição de paradoxos e mais paradoxos. A conexão desconectada eternamente diante dos olhos (telas) alheias.
 O Eu arquitetado pela pós-modernidade digitalizada está longe de qualquer proposta poético-metafísica, menos ainda está próximo de um ceticismo cientifizado e criado pelo choque do conhecimento com a Moral. Contrariamente, mais se aproxima de uma Teologia do consumo, com seu manual de comportamento e aspirações e pasteurizações de um mundo abastecido e embasado por uma série infindável de automatics-selfs.
Os objetos, por sua vez, não evoluem, se metamorfoseiam. Uma repaginação constante pra evitar a percepção visual da decadência, da des-historização dos indivíduos. A corrupção da Estética se percebe na limitação de seu papel pós-moderno de ludibriar a percepção visual da coletividade, para que a sensação momentânea de renovação e sofisticação, independentemente de sua origem na produção, estejam sempre presentes nesse momento efêmero, dono de uma aspiração de eternidade, e que também de uma maneira onipresente, evite o sintoma de desgaste e do aniquilamento da criatividade, além da crise moral que sempre se anuncia inebriada pelo sono do conforto do consumo.
       A metamorfose constante da estética dos objetos, sobretudo os eletroeletrônicos, é um paliativo para as i-moralidades pós-modernas, pois as ações que tais objetos possibilitam, se são possíveis, cientificamente, podem ser executas sem medo pela sociedade. Em suma: não é preciso haver consciência crítica sobre o ato em si. Aliás, viver sob a égide da possibilidade tecnológica, ao final, é sempre um alívio. 
Tal metamorfose nos bens de consumo desencadeia, ainda, uma noção de tempo não-linear, mas sim caleidoscópico. A mensuração do tempo pela momentaneidade da moda e do consumo de bens inseridos nas atmosfera dos desejos, acelera ainda mais os problemas ecológicos e políticos. - O mundo isolado do consumo pós-moderno é imune não só ao pensamento histórico, mas também ao geográfico-filosófico-artístico. Um paraíso em inércia, sustentado pela votabilidade incontrolável do desing dos bens de consumo descartáveis e 'duráveis'.

II - Selfies: auto-antropofagia narcisa e/ou capitalismo e canibalismo