quarta-feira, 20 de maio de 2015

A esposa





escrtio em 2001


           Acanhado como um pássaro cansado da chuva, ele apalpava a solidão de sua casa e olhava as paredes com seus quadros, posters e manchas que pareciam sinais dos céus, porém indecifráveis. Caminhava da cozinha desorganizada para a sala em igual tom. O banheiro exalava um aroma de ácido úrico, o qual nem sentia mais.
Normalmente, às sete e trinta, abria a porta da frente e se encaminhava para o ponto de ônibus e sacudia por vinte minutos até que chegasse ao escritório de advocacia onde era um auxiliar competente e calado. Fazia o serviço de forma mecânica e por isso dedicava a maior parte de seu tempo a ouvir a conversa dos bens sucedidos que capitaneavam a agência. 
Admirava a agilidade dos jovens advogados. Costumava observar a pele escanhoada, o corte dos cabelos, as expressões das faces em diálogos telefônicos. Era como se observasse da Terra, os deuses no Olimpo. Mas não queria ser um Deus, apesar de sentir-se inferior. Às vezes, na hora do cafezinho, ganhava um sorriso, tapa nas costas, recebia um gesto que afirmava nas entrelinhas que ele até fazia parte daquele grupo de destemidos, que ganhavam dinheiro com lábia e astúcia. Atributos que ele não tinha e desejava secretamente obter de uma forma mágica, para que todos pudessem olhar para ele com espanto. O maioral, o talento que dispensava apresentações.
Atendia às vezes o telefone e sentia ainda mais a inferioridade quando a voz era feminina e não tinha o tom de uma cliente, mas sim o de um programa marcado por algum dos caras. Quando passava o fone ao vencedor, dilacerava-lhe aquele olhar de satisfação de quem é procurado por uma fêmea. Tornava-se um invejoso, um homem capaz de matar alguém, pois ainda não conhecia essa felicidade e por isso ninguém poderia conhecer. Quando percebia que tal sentimento havia lhe tomado conta, resguardava-se em suas ilusões e transportava-se para a infância, um tempo onde não havia e namoradas, somente amigas, colegas correndo no pátio, ao vento, olhando o mar imaginário, onde capitão Nemo mergulhava fundo o Nautilus, fugindo da imbecilidade humana. Teria ele se transformado num Nemo? 
Sempre voltava para casa com um saco de pão nas mãos. Levava sempre dois. Talvez uma mensagem subliminar que enviava a si mesmo, todos os dias, tal como num mantra. Sonhava que um dia lhe abririam a porta, que um sorriso junto a cabelos dançando na brisa lhe tocariam o rosto cansado de tanto trabalho mecânico e uma mesa com velas sustentaria um jantar leve, banhado a vinho branco da Argentina. Não sabia o porquê de um vinho argentino estar em seus sonhos. Muita coisa no mundo não fazia sentido. Se deixassem de existir uma série de coisas, continuaria a viver na mesma solidão.
Nem sempre comia os pães que trazia. Ficavam para o outro dia, para o café da manhã. Em casa, em pleno horário nobre, ligava a TV e tentava entender o noticiário que, cada vez mais, parecia longe dele, sem nenhum significado. Então começava a olhar para a apresentadora, para sua boca, seu cabelo, sua maquiagem e sonhava alto. Ligava o som, sempre o mesmo conjunto português, os fados modernos, aquela voz fina de sereia cortava-lhe a alma e então chorava. 
A luz azulada da TV dava as suas lágrimas um tom ainda mais melancólico. Era um oceano que saía dele e de tão profundo, tirava-lhe o leme da mente e um mergulho na areia do tempo era inevitável. Lá estava ela, sua mãe, em ilusão, com braços abertos, no meio da névoa dos sonhos, chamando-lhe para o seio. Uma vergonha cobria-lhe o frio dos ossos com um frio ainda maior. Com a força dos espíritos dos tempos inacabados, transfigurava a imagem de sua mãe na Vênus de Milo. Era uma ação alquímica que aprendera e que lhe servia. Assim, no meio da noite, dançava fados com a Vênus de Milo roçando-lhe o objeto fálico. Tudo ao sabor do oceano insondável de Nemo.
Às três da manhã a crueldade sempre desfazia suas névoas de proteção. O gosto mofado da realidade trazia a insônia e mostrava a TV ligada, exibindo pela milionésima vez o mesmo desenho sem graça. “Abram as portas, a depressão chegou, inevitavelmente!” Pensava consigo mesmo, numa conversa que já não queria manter mais. Talvez esse fosse o diálogo mais monótono de toda sua vida. A conversa que tinha com ele mesmo.
Já o sol não se importa com os diálogos humanos, sejam eles concretos ou imaginários. Apenas ele faz seu trajeto fixo no céu e clareia o dia. E tudo retorna com seu gosto árido de mesmice. Não resta outra coisa senão abrir a porta no mesmo horário de sempre e começar mais um dia. Há tanto castigo no caminho para o trabalho. Como somos tristes quando fazemos da infelicidade nosso ganha pão.
Abriu a porta de vidro do escritório e se dirigiu para sua mesa. Sem se importar se havia mais alguém no local, deixou-se levar pela solidão dos carimbos em suas danças imóveis no suporte manchado de tinta azul marinho, pelo vidro embaçado que cobria a mesa, pelos recortes de jornais que descansavam sobre o feltro visível, tal como quadros numa galeria de um homem só, e que já não significavam mais nada. Olhava a marca de seus cotovelos e o desgaste da maçaneta da gaveta que abrigava uma desordem importante. Nada poderia ser jogado fora. Não queria naquele dia a faxina especial. Aquilo poderia esperar. Levantou os olhos e viu dois dos grandes mocinhos passando diante de sua mesa. Era como se ele não existisse, como se assistisse a uma peça de teatro da coxia, quase adivinhando os diálogos. Não que fossem escritos por ele, mas haviam sido escritos para que o machucassem fundo em suas mágoas. Feitos para ampliar sua solidão, torná-la algo que ultrapassasse as fronteiras da tolerância. Então desaguava a acidez da inveja, da raiva e da fúria. Porém, silenciosos eram seus espinhos. Seu peito tornava-se um vácuo, um abismo negro e as palavras ouvidas, mostravam o quanto era infeliz.
“... cara, você nem imagina como ela beija bem!!”.
“É!”
“Vou sair com ela outra vez!”.
“Então vai virar namoro!”.
“Acho que vai”.
“Será que ela está pensando da mesma maneira?”.
“Não estou preocupado com isso. Apenas a quero”.
“Olha lá, a reunião vai começar. Vamos?”.
Sozinho outra vez, pensou com medo, não querendo pensar se um dia, talvez, viesse a viver tal diálogo. Se um dia beijaria uma mulher de sorriso largo, uma bailarina dançando nas nuvens da primavera, em seus braços, como num postal de uma cidade qualquer da Hungria.
Pela janela soprava um vento frio e tamanha era a solidão, que o mundo num silêncio estabeleceu um gesto de solidariedade para com aquele homem. A nau em que viajava conheceu a afiada navalha dos arrecifes da não paixão, do não amor, do sonho que apodrece na saliva sobre a língua que não pronuncia a palavra sagrada e que não toca outros lábios. Era a morte bem aceita naquele momento em que todos se levantavam para o cafezinho e as conversas banais faziam da vida algo suportável. Um guarda-chuva em dia de tempestade. Ele era apenas uma calmaria do inferno, preso e ancorado diante da imensidão. Imobilizado pelo acanhamento, não conseguia dizer “Olá!”, para que entendessem que estava vivo.
Abriu um envelope do correio, mais uma propaganda, mais um catálogo em sua vida e começou a folhear sem interesse. Apenas como quem o faz para matar o tempo. E assim viu sua primeira companheira, em plástico, com preço estampada embaixo, feita para ser paga em prestações. A solução de seus problemas, de sua angustiada e solitária vida. Não precisaria usar as palavras para conquistá-la, apenas rendimentos.
Sentiu vergonha, achou que todo o mundo olhava para a mesma revista. Sabia que não era um gesto comum, ou menos ainda saudável. Comprar uma mulher de plástico era a maior prova de que era um homem solitário e como tal, necessitava de ajuda. Fechou a revista e resolveu esquecer a idéia e terminou o expediente da mesma maneira inócua que havia começado. E foi em meio a garoa da tarde com a mulher de plástico na cabeça. Fechou a porta da sala com a roupa úmida e foi para seu chuveiro. Fez um lanche, que substituiu o jantar, como sempre, e sentou diante de seu oráculo moderno e começou a passar os canais, como se isso melhorasse a TV. Então viu um homem sendo entrevistado num talk show e a seu lado uma mulher de polietileno. Ele dizia que não havia nada de errado com um homem querer viver com uma boneca, por sinal, poderia ser muito saudável. Meio terapeuta, meio marqueteiro, meio cientificista, e também na moda, passava ao telespectador uma confiança. “Comprem em paz, não há erro nisso!”.
Noutro dia fez a ligação. Fez o pedido por um orelhão que ficava à frente do prédio em que trabalhava. Deu endereço, escolheu a melhor maneira de pagar e recebeu uma estimativa de quando a boneca chegaria. Sentiu um frio na barriga, como se o mundo o olhasse por um único olho e ele nu, com toda sua vulnerabilidade exposta e banhada de sol. Desejava uma caverna para se esconder. Seu acanhamento quase o impediu de atravessar a rua, quase não conseguiu desligar o telefone. O barulho dos automóveis vibrava dentro de suas vísceras. Nunca mais ele seria o mesmo. Suava frio pela nuca e suas mãos tiveram de ser lavadas com muita pertinência no lavabo. Foi o dia mais longo, a semana mais densa, o tempo mais pegajoso que viveu. Mas enfim chegou o sábado e lá pelas dez da manhã o carro do correio parou à porta de sua casa. Dois Homens carregavam um caixa em direção a sua porta e tocaram a campainha. Pronto, sua esposa havia chegado.
Assinou os papéis necessários e fechou a porta às costas dos dois carteiros. Em pé, na sala, diante da caixa fechada, sentiu medo de abrir o lacre. Só conseguiu porque leu um aviso de que a boneca vinha vestida, para maior segurança dos consumidores. Presentes como estes podem ser abertos em repartições públicas, em dias de festa, em comemorações de amigos invisíveis. Pensando nisso, a empresa mandava sempre a boneca em trajes esportivos. Ela usava uma calça azul e uma blusa amarela; tinha um sorriso claro e os olhos da cor do céu. Seus cabelos acastanhados eram belos e os seios na casa da perfeição. Ele tremeu quando a viu sentada no sofá, com uma flexibilidade de dar inveja. Sentou-se diante dela e começou a procurar as primeiras palavras. Precisava iniciar o contato. A primeira impressão é a que mais vale.
Olhou a bagunça à sua volta e começou a arrumar as coisas, se desculpando por não ser uma pessoa cuidadosa. Disse que vivera toda sua vida longe das mulheres. Sua mais remota lembrança vinha de sua mãe que lhe cobrava o quarto arrumado, o cabelo penteado, os dentes escovados e os sapatos brilhando. Quando não cumpria o mínimo, recebia sanções.
Quanto à comida, sentiu-se envergonhado, nada era natural. Era um festival de enlatados e comidas aromatizadas artificialmente. Começou a fechar os armários. Queria esconder o que podia. Bebidas ele não tinha, o que poderia mostrar um ar de infantilidade. Não seria possível tentar mostrar um perfil de atleta abstêmio, ele não tinha cara de fisiculturista.
Voltou da cozinha e se deparou com o olhar profundamente azul pairando no ar. Parecia que fitava sua roupa. Então correu para o quarto e foi vestir-se de outra maneira. Quando pegou a camiseta sentiu o próprio cheiro, ainda não havia tomado banho. Precisava impressionar desde o primeiro momento; foi para o chuveiro.
Foi rápido, muito rápido. Não queria passar a idéia de que desperdiçava energia. Uma ansiedade extrema cobria-lhe o peito, ele precisava enfrentar sua mulher e rápido. Olhou nos olhos arregalados e sentiu que ela observava no mais profundo de seu ser. Não havia palavras em sua boca, não havia o que dizer. Sentou-se ao lado dela e ficou procurando um assunto qualquer, que pusesse fim a aquele momento que parecia eterno.
Nenhuma brisa entrava pela janela, nenhum movimento aparente ocorria naquele momento. Passou por sua cabeça que talvez fosse ele também um boneco de plástico. Não tinha história, não tinha lembranças e era triste. Discordava dos conceitos orientais dos opostos em que se dizia que ao se entender o que é feio, se entende o belo e vive-versa. Conhecia uma tristeza profunda sem jamais ter conhecido a felicidade. Quem nunca foi feliz, não sabe o que é a tristeza. É isso que dizem os monges, mas no caso dele, não fora assim por toda visa. Assim, mais clara se tornava a ideia de era um boneco. Ficou imóvel. Deixou o tempo passar. Pensou em não pensar no tempo e talvez, quem sabe, o tempo deixasse de passar e arrastar consigo tudo aquilo que tem vida para o buraco da decadência. Não pensou em nenhuma prece. Mas o silencio de sua mulher o incomodou. Não era possível permanecer muito tempo perto de alguém que abraça o silêncio tal como um barco e sai pelo oceano da alma humana sem saber por onde vai.
Não poderia continuar com aquele relacionamento, não seria saudável, não seria normal para ele. Talvez fosse um homem que nascera destinado a morrer solitariamente dentro de um mosteiro, rezando a Deus, pedindo perdão por todos os seus pecados não cometidos. Para se salvar, precisava abrir mão de tudo que o cercava. Ninguém sai de um casamento levando coisas. Desde que ela entrara em sua vida, carregada pelos homens do correio, sua vida havia mudado. Não queria a mudança, nem sua antiga vida. Tudo poderia cair, explodir, virar pó, tal como as duas torres gêmeas que caíram infinitamente no noticiário. Será que aquilo foi verdade mesmo? 
Será que ela iria aceitar uma separação amigável? Fora um erro, ele só queria uma aventura, e nada mais. Mas filhos de polietileno não ficam doentes, havia afinal, algum lucro naquilo tudo. Mas porém, se num futuro distante, os filhos, num inverso de Saturno, resolvessem comer a carne do pai, o que ele faria? Estamos sempre comendo o pai e ejaculando na mão terra. Eis o fardo da carne que ostenta sangue, carbono, hélio, nitrogênio e sais minerais. Realmente ele odiava aquela mulher. Melhor partir, tal como nos filmes, como nos livros. Ninguém poderia ser feliz naquele mundo de ofícios, infinitos relatórios, guias de saúde privatizada e faturas de cartões de créditos. O único encantamento possível era o de sair do sistema que o oprimia, que vinha através daqueles olhos grandes de plástico, receptáculo de esperma e desejos estimulados pela propaganda de roupas íntimas.
Olhou fundo naqueles olhos e sentiu toda raiva do mundo, mas não tentou nenhuma agressão, afinal já existiam delegacias especializadas em apurar violências domésticas. Melhor sair sem dizer adeus. E o fez, mas antes pegou o disco de um cantor desconhecido; era a única coisa que desejava levar, como lembrança da primeira parte de sua vida. Saiu olhando o céu na esperança de encontrar sua caravana de camelos em busca de um deserto marrom, onde o vento fazia o sol oscilar ao fim da tarde, anunciando que a fria noite estrelada estava para chegar. Então, sob a tenda de pele, seria possível dormir como se mais nada restasse a se fazer.