quarta-feira, 29 de junho de 2011

A SAIDEIRA



A primeira saideira da história da humanidade, pelo menos da que se tem notícia, ocorreu no milagre das Bodas de Canaã. Muito além do meio da festa, Jesus é convocado por sua mãe a transformar água em vinho. E ele não vacilou, estalou o polegar e o indicador e da água fez-se o vinho. Detalhe: o Homem e Deus competem em criação, tal qual Lennon e MacCartney competiam em composições musicais: Deus fez a luz, FIAT LUX; já o Homem, fez o vinho. Agora diga você qual canção é mais bela.
Bom, mas o assunto é a saideira. Acredito piamente que o milagre de Jesus liberou os bebuns do pecado da embriaguez. Pois se vinho foi liberado por Jesus ao fim da balada, quer dizer, das bodas de Canaã, um típico momento em que quase todo mundo já está uns três degraus acima do chão, não há problema nenhum em chamar a saidaeira lá pelas tantas, nos bares de hoje. Porém, é também a hora em que o dono do bar já está expulsando os fregueses com a vassoura em punho e se irrita ainda mais quando descobre que, mais ou menos, 20% das vendas, vai para o prego mais alto, o famoso fiado.
Talvez Jesus não tenha pensado nesses dois entraves, o fiado e o desconforto dos donos de bares modernos, na consagração da saideira — e devemos perdoá-lo por isso, pois ele, com certeza, como bom moço que era, bebeu do próprio milagre em Canaã e dançou aos sons dos tambores judaicos. Festa de judeu é igual festa de italiano, parece final de copa do mundo. Naquele momento, possivelmente, sua onisciência foi só presente e ele foi feliz por uns goles.
Devo confessar que Jaguar, o maior cartunista do Brasil, é quem deveria estar escrevendo estas linhas. Portador de um fígado de titânio, amalgamado com fibra de carbono, único capaz de acompanhar o falecido Nelson do Cavaquinho em tempos de glória, numa jornada pelos bares do Rio de Janeiro, no ápice da boemia, nos de 1960, Jaguar é dono da frase mais épica da história etílica da humanidade. E ela surgiu depois de uma frustrada caminhada pelo calçadão de Copacabana. Ao final do trajeto, língua de fora, chamou um táxi e parou no primeiro quiosque que encontrou. Sentou-se à mesa diante do mar e fez seu pedido: cerveja e lingüiça-frita; ao brindar, disse: ‘colesterol, aqui me tens de regresso!’
Acredito que a saideira é a passagem para o paraíso. É o momento em que o homem é mais fraterno. Abraça ao próximo sem se importar quem ele é, sua voz fica mais afinada, ou o ouvido menos exigente, e canta com coração e alma as canções mais novas das décadas passadas. É uma das visões e audições mais belas da humanidade, um coro de bebuns em ato de consagração à saidera. É fato que a vizinhança, às vezes, chama a polícia e o delegado é quem fica com a frase de encerramento: “vão em paz e que o senhor vos acompanhe”.
Caso você duvide, caro leitor, faça você mesmo sua pesquisa de campo e peregrine pelos botecos de nossa cidade, peça licença a sua patroa, diga que é um trabalho sério, pode até parecer palhaçada, mas é uma maneira de entrar em contato com o milagre de Canaã, que chegou até nós através da saideira. Uma mulher que briga com o marido por causa da saideira, está brigando com o milagre de Canaã, ou seja, heresia grave.
Além disso, bebuns de todo Brasil, uni-vos, e façamos um abaixo assinado para ser remetido ao Vaticano: é preciso beatificar e canonizar o Epocler e o Epativan. Dois santos da manhã seguinte, aos quais não podemos mais parar de rezar, pois não somos como Jaguar e temos fígado de carne e sangue. E para provar que não somos intransigentes, agraciaremos os bebuns ecológicos, maioria filiada ao Partido Verde, com a canonização do Boldo. Edifica-se assim, já não sem tempo, a santíssima trindade da proteção hepática, sem a qual o milagre das Bodas de Canaã deixará de fazer seu efeito sobre nós. Que o vinho seja louvado e bebido. Ordens do chefe.
Crônica inspirada num comentário de TOM VITAL, no post, Quaresma.