quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

George Clooney, os ladrões e Jesus



Nada é mais abominável do que um ladrão. Ele espreita, trama, permanece na sombra e leva consigo o fruto do trabalho do outro. Mas George Clooney, num filme chamado 11 Homens e um Segredo, usa todo seu glamour para encantar a platéia e todos torcem por ele, um mero larápio. Na 'vida real', a mesma platéia clama pela redução da maior idade penal, sonha com a pena de morte, deseja cercas elétricas mais potentes e por agentes de seguranças capazes de exterminar malfeitores e sem deixar rastros. Os ladrões do mundo real não são bem-vindos como o lárapio George Clooney.
Seria óbvio se não fosse trágico. Mas o problema é que a ficção cria a realidade às suas margens. Parece um paradoxo, mas não é. É dado a todos nós, pobres mortais, saber que algo ficcional não pode criar algo real. Jesus, quando diante de seus seguidores, usava parábolas para temperar o senso comum que construía a realidade. Na bela história 'da volta do filho pródigo', sabemos que o pai e os dois irmãos não nunca existiram, são todos frutos da imaginação, mas agem triunfantes sobre a realidade, porque encontram morada no coração de quem as escuta. Semeada a parábola, o ‘hospedeiro’ a propaga através de seus atos na realidade. Em suma, a sociedade de consumo toelara o ladrão bonitão e americano, de preferência. Se vir da periferia e for preto, índio, branco desdentado, melhor a cadeira elétrica. 
É vertiginosa a produção de parábolas ao longo da História Humana. Podemos criar uma a qualquer hora. Vejamos um exemplo: imagine, leitor, a crucificação de Cristo, mais precisamente os momentos que antecederam sua morte, o diálogo com os ladrões. Ele olhou pro bom ladrão, o Dimas, e lhe disse que logo estariam ao lado do pai, no paraíso, e que por isso não ficasse aflito. Se fizéssemos uma comparação com os homens modernos, como numa parábola, quem seria o bom ladrão? A resposta é mais do que óbvia: o Lula!
Quando o Lula ouviu Jesus dizer, “logo estaremos ao lado do pai, no Paraíso, após uma longa viagem”, o bom ladrão sindicalista retrucou: “Jesus, vamos negociar, se é uma longa viagem, tem que ter vale-transporte, senão o trabalhador não ‘chega’ onde é preciso!”. Jesus, dotado de amor infinito, concordou, o bom ladrão pensava nos outros e não somente em si. Queria boa vida, conforto, o caminho das cotas, uma cachacinha, mas também desejava que todos pudessem deixar a miséria pra trás.
Lula, ou Dimas, era feio, nordestino, não tinha um dedo, falava errado e era odiado pelos fariseus, os mesmos que condenaram Jesus. — O bom ladrão, por todos esses atributos, jamais poderia participar de um filme do Clooney. E tem mais: ele não era bem visto por Roma, ou melhor, pelos EUA.
Já o outro ladrão, à esquerda, manteve-se em silêncio durante toda a negociação do vale-transporte-para-o-céu. Mas Jesus sempre acreditou nos homens e lhe perguntou: “...e você, não deseja algo?”. O mau ladrão disse que lhe bastaria a mão livre da cruz, só uma: “...quero acender meu último cigarro de maconha!”. Jesus, intrigado, perguntou-lhe o nome e ouviu: “...Fernando Henrique, meu Rabi.”
Jesus sacudiu a cabeça, quase que derrotado, pois ali estava o individualista, o intelectual entreguista, um tipo que lutou pelos poderosos a vida toda, que chamou os aposentados de vagabundos, que deixou faltar luz elétrica, que permitiu que os juros fossem a 45%, além de dizer que o desemprego era inevitável e que tudo, todo patrimônio do povo, deveria ser vendido aos EUA. Por isso, anos depois de seu governo, o congresso americano lhe deu um prêmio literário, um agradecimento por sua colaboração ao desenvolvimento econômico americano, quer dizer, romano. 
Detalhe: o mau ladrão só foi condenado porque, dentre os vários crimes que praticou contra o patrimônio público, descobriram que ele era o responsável pela lista de FURNAS e nunca encontraram o dinheiro que emprestou do FMI, em nome do povo brasileiro. Os bilhões ‘sumiram’.
Mas antes que a morte de Jesus ocorresse, soldados romanos o tiraram da cruz. Ordens de última hora do STF, que soltou o Rei dos Judeus e mandou que Barrabás fosse crucificado em seu lugar. Diga-se de passagem, um ledo e Ivo engano, pois sem a crucificação o milagre da redenção não ocorreu. O STF, composto por amigos do mau ladrão, queria ser mais poderoso do que Deus e traiu Jesus, tirando-lhe o direito à ressurreição, manobra que impediu a publicação do vale-trasporte-para-o-céu, como queira o Bom Ladrão. 
Pobre Barrabás, o guerrilheiro, um Zelote, lutava contra a dominação romana (americana), homem do mar, lutou pelos mais fracos, matou legionários facínoras e ao final foi condenado por seu próprio povo, gente que ele desejou libertar do Imperialismo Romano, quer dizer, americano. Barrabás, em seu bairro, era conhecido como Zé Dirceu.                                                                          

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Sangue de coca-cola


Eu ainda vou à banca de jornal e no caminho, dias desses, me deparei com dois jovens, além de estarem modernamente mal vestidos, tinham expressão de que estavam à toda velocidade, senhores do mundo. Gesticulavam ao ritmo de uma música que eu não ousaria chamar de arte e, pra piorar o enredo, tinham uma lata de coca-cola nas mãos.
A imagem da própria decadência pós-moderna concretizada me causou um insight, um fiat lux! Esse xarope gaseificado corroeu a Civilização ao longo do século XX. Ficamos deformados, tanto fisicamente, quanto moralmente, com o consumo em escala industrial desse veneno.
A história da Civilização Ocidental Mediterrânea, Grécia e Roma antigas, foi escrita ao sabor do vinho. As mais profundas linhas de raciocínio, as maiores investigações sobre a condição humana e seu sentido sobre a Terra, desenvolveram-se ao redor de uma garrafa de vinho tinto mediterrâneo. O Homem despertou para a harmonia entre o corpo e a beleza da arte, mais as apreciações do espírito e suas especulações provindas dessa bebida divina; a filosofia nasceu do vinho. A Humanidade greco-romana seguiu o fluxo da bebida garganta adentro, em busca de um significado para si mesma. Até os deuses do Olimpo bebiam o vinho.
A coca-cola, por sua vez, foi criada no final do século XIX, nos EUA, e logo se espalhou pelo mundo. O xarope foi idealizado para se encaixar, comercialmente, aos hábitos antialcoólicos dos puritanos, que são a essência da colonização estadunidense. Em função dessa estranha obsessão de agradar a Deus, através de um estoicismo tosco, o protestantismo, pode-se dizer, foi a motivação da criação de um dos maiores venenos da humanidade. Seria uma vingança do Deus único, hebreu, contra o politeísmo grego-romano?
O xarope deformante chegou à Europa antes da 1ª Guerra Mundial e se espalhou com mais força após o final do conflito. Fernando Pessoa, em 1928, escreveu um slogan sobre a bebida, “primeiro estranha-se, depois entranha-se!”. O poeta estava certo, tanto em seus hábitos pessoais, aproximando-se mais do conhaque e mantendo-se em total distância do xarope, quanto na profecia do futuro da própria civilização, que iniciaria sua decadência com a intoxicação de suas entranhas pelo veneno não-alcoólico puritano.
Antes da 2ª Guerra Mundial, a coca-cola passou a ser consumida em larga escala na Europa. Quando os EUA entraram no conflito, a coca-cola autorizou que os soldados americanos pagassem pelo refrigerante o equivalente ao preço de custo. A bebida, além de um consolo, os tornava 'super-homens', afinal, essa é a finalidade do açucar. Na Alemanha, na mesma época, a importação da coca-cola foi proibida. O resultado do embargo foi a criação, pela própria empresa da coca-cola, da Fanta Laranja, só para abasteceminto do mercado germânico.   
Findada a 2ª Guerra, o consumo se alastrou ainda mais no mundo, e a coca-cola venceu todas as barreiras, nem mesmo os países islâmicos conseguiram ficar imunes. E quanto mais os EUA, o berço da criatura açucarada, consumiam a bebida, mais se tornavam beligerantes, obesos, paranóicos, consumistas e decadentes e sem a menor vergonha nas dezenas de invasões e propagações de guerras pelo mundo afora.
No Brasil, a coca-cola passou a ser consumida em 1942, às vésperas da 2ª Grande Guerra. Em termos culturais, pode-se dizer que a Semana de Arte Moderna de 1922 teve a felicidade da ausência desse chorume e assim descobriu um Brasil intocado, o guaraná no coração da floresta amazônica, que nunca conseguiu seu devido lugar em nossa cultura. Já o Concretismo foi inspirado e entranhado à base de coca-cola, com falsos ares de pós-modernidade e uma aceitação passiva do lixo como inspiração, ‘a coca da cloaca, beba!’.
A beligerância do mundo, o recrudescimento da direita, o funk, o crack, a mídia, a ilusão do neoliberalismo, o cinema fast-food, a morte do teatro, o facebook, o vazio da juventude serão sintomas do consumo da coca-cola? Afinal, com bilhões de pessoas bebendo milhões de litros desse veneno, é inevitável a poluição do sangue ocidental que irriga a massa de cérebros que forma o senso comum. E não há mente que resista a um fluído que mais parece o rio Tietê, e está a milhares de quilômetros de distância da pureza de um licor dionisíaco, capaz de fazer a humanidade celebrar uma estética despoluída de mediocridade. Evoé, Baco!!           

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Não era um dragão




Madrugada de sábado para domingo, eu estava assistindo, pela segunda vez, Madagascar 3: os procurados, no canal 164 — gostei da dublagem. Eis que minha mulher me chamou, um barulho esquisito dentro da cômoda de roupas, mais precisamente, na minha cômoda de roupas. Dei pause na TV e fui avaliar.  Realmente havia algo dentro. A primeira coisa que pensei foi num rato. Que horror!
Arrastei o móvel pela copa em direção à porta do quintal, seria uma tarefa para o outro dia. Porém, fiz uma parada forçada à mesa, aproveitei que o vinho estava ali, de boa, e me servi. Acordei meu cachorro, que normalmente dorme numa grande almofada e lhe indiquei o barulho. Ele abriu os olhos, se levantou e se sentou aos meus pés. Um guardião sonolento, não deu nenhum palpite. Depois fechou os olhos. Corpo presente, mas a alma ao longe.
Cortei alguns pedaços de queijo para acompanhar o vinho — os vinhos não são monogâmicos, não adianta a insistência — e o barulho continuava. Era um ‘tec-tec’ na madeira num ad infinitum instigante, e minha imaginação foi longe. Primeiro, pensei nos ratos, depois em cobras, depois em escorpiões, depois em morcegos, depois em baratas, depois em formigas. Resolvi beber mais vinho. Substitui o queijo por torradas com berinjela de conserva.
Puxei conversa de novo com meu cão e perguntei a ele em quem iríamos votar, em 2014. Ele foi enfático, “Dilma, é claro!”. Perguntei o porquê da certeza e ele respondeu, “...olha a qualidade da ração que você compra pra mim! Para alguém da classe trabalhadora, isso é poder aquisitivo!”. Concordei. Ele era um bom cabo eleitoral e ainda concluiu o assunto de maneira categórica. “...se o dólar estivesse alto, como muita gente quer, você não estaria bebendo esse vinho português, concorda?!” Meu silêncio era sinal que concordava em gênero, número e grau.
A madrugada avançou e junto com ela o tec-tec. Abri outra garrafa de vinho e minhas memórias pediram passagem. Iniciei um jogo comigo mesmo, tentei me lembrar da última vez que havia entrado numa igreja, mas foi impossível, um branco total; dei graças a Deus. Depois, da última vez em que havia me emocionado numa palestra qualquer, também não consegui nenhum registro positivo.
Teimoso, passei para o campo das festividades, busquei o melhor Natal que havia festejado. E o melhor, estranhamente, foi o que eu não fui. Ficara sozinho em casa, até que meu vizinho, Bruno, apareceu às 20hs00 e tentamos fazer um blues, que mais que parecia um chachado; ele se foi às 21hs00. Às 23hs45 minha mulher voltou da ceia familiar, nos deitamos e lhe dei uma taça de vinho. Assistimos ao filme, Vida de Inseto, de mãos dadas; rosto colado no outro. Inesquecível. 
Voltei das lembranças com o aumento considerável do tec-tec na cômoda. Achei que o fundo do móvel fosse ser rompido. Peguei meu violão e toquei o esboço de um instrumental em que estou trabalhando. O barulho cessou. O bicho havia pegado no sono. Levantei nas pontas dos pés e voltei pra cama. Continuei Madagascar 3. Depois dormi.
Noutro dia, coloquei a cômoda no quintal e chamei meu assessor para assuntos ligados ao meio ambiente, meu cunhado, e vasculhamos gaveta por gaveta. Nada, somente a roupa dobrada.  “...se havia um rato aqui, ele já foi embora”.  Concordei com o laudo que me apresentou e dei por encerrado o procedimento.
Colocamos o móvel no seu devido lugar e fomos comemorar a vitória com o vinho. Conversa vai, conversa vem, ele me perguntou se eu era do Partido Verde. Disse que não, que em 2014 iria votar na Dilma. Ele então me perguntou o porquê da escolha”. Plagiei meu cachorro e lhe disse, “...você reparou na qualidade do vinho que estamos tomando?”.  

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

“O futuro, já começou...”





Aquela musiquinha hipócrita da Rede Globo é uma balela, passado o fim do ano, tudo volta ao normal, com mentiras e desinformação de primeira qualidade de nosso jornalismo oficial, autoritarismo e preconceito de líderes religiosos e lambanças do PSDB.   
A Folha de São Paulo e Globo (Eliane Catanhêde e Mirian Leitão) anunciaram um racionamento de energia em função dos baixos níveis dos reservatórios de água. Reuniões de praxe do setor elétrico estatal foram transformadas em extraordinárias e emergenciais. Resultado: as baluartes da ‘informação’ se esqueceram de combinar com as chuvas que vieram sem o menor pudor, aliás como em todo verão. Com certeza irão acusar o Governo Dilma de criar uma ‘manobra pluviométrica’ para evitar racionamento.
Por mais que nossas ‘isentas’ repórteres queiram, o título de partido do APAGÃO é tucano. Acho que até deveriam criar uma escola de samba: Acadêmicos do Candeeiro, ou Mocidade ‘dependente’ do Lampião de Gás, ou mesmo Estação Primeira dos Castiçais. Eterno Presidente de honra: Fernando Henrique Cardoso. Comissão de frente: Aécio (pó de pirlimpimpim), Alckmin (segurança pública impecável), Serra Malafaia (a Terra é quadrada), Pedro Bial (podemos chamar os negros de gorilas), Irmãos Marinho (Viva o Golpe de 1964!) e mais degenerescências.
Aliás, tenho boas notícias políticas. Aécio será candidato, em 2014, ao cargo de Presidente da República. Ele tem as bênçãos do FHC. Encontraram pontos de convergência na maneira de ‘administrar’ o Brasil: FHC quer liberar a maconha, já Aécio quer proibir o bafômetro. FHC sonha em vender a Petrobrás, e Aécio também. Além do mais, os dois não agüentam o Serra com seu programa católico-evangélico-medieval-anti-aborto e satanização dos gays. Basta de Serra!
Mas o pior está por vir: o filme de Spielberg, Lincoln, ao que parece, vai ganhar o Oscar até na categoria que não vier a competir. E tem um problema, Lincoln consegue acabar com a escravidão histórica dos EUA comprando votos no congresso americano, o que teria sido o primeiro mensalão da história das repúblicas.
Porém, o Ministro Joaquim Barbosa disse que não quer saber, se estiver assistindo ao filme e Lincoln vier com essa gracinha, dará voz de prisão e sairá com ele algemado do cinema, seja em qual for a sala de projeção de nosso território nacional que este ato abominável vier acontecer. Dessa maneira, podemos dormir sossegados, a lei estará sempre protegida.
E talvez por coincidência, no dia 13/01/2013, a Folha de São Paulo deu outra notícia falsa, o anúncio do aumento da gasolina em 7%. E olha que nem foi culpa da Catanhêde. Quem disse que os irmãos Frias (sobrenome sugestivo) precisam de alguém para rebaixar ainda mais a credibilidade dos Jornais impressos, os últimos dinossauros a tentar monopolizar a informação no mundo moderno? 
Pra dizer que eu não dou uma trégua, pior que o PSDB e nossa mídia, só o papa Bento XVI. Nem bem passou o Natal, com suas aspirações de amor, fraternidade e cristandade, despejou sobre os gays seu glorioso preconceito ariano hitlerista: “Casais gays não devem adotar crianças, melhor que elas morram nas ruas, ou se tornem pequenos laranjas do tráfico.”  Vou esperar seu pronunciamento sobre a pedofilia, o que será que ele vai dizer?!
       Dessa forma, entramos 2013 com os mesmos vícios, atrocidades éticas e megalomanias dos poderosos de sempre, donos da verdade e extremamente comprometidos com seus interesses próprios. Mas sempre pode ficar pior, em janeiro tem BBB 13.  

domingo, 6 de janeiro de 2013

Educação e racismo - Kabengele Munanga


Nascido no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo, em 1942, o professor de Antropologia da Universidade de São Paulo Kabengele Munanga...
CartaCapital: O senhor afirma que é difícil definir quem é negro no Brasil. Por quê?
Kabengele Munanga: Por causa do modelo racista brasileiro, muitos afrodescendentes têm dificuldade em se aceitar como negros. Muitas vezes, você encontra uma pessoa com todo o fenótipo africano, mas que se identifica como morena-escura. Os policiais sabem, no entanto, quem é negro. Os zeladores de prédios também.
CC: Quem não assume a descendência negra introjeta o racismo? [...]
KM: Isso tem a ver com o que chamamos de alienação. Por causa da ideologia racista, da inferiorização do negro, há aqueles que alienaram sua personalidade negra e tentam buscar a salvação no branqueamento. Isso não significa que elas sejam racistas, mas que incorporaram a inferioridade e alienaram a sua natureza humana.
CC: O mito da democracia racial, construído por Gilberto Freyre e vários intelectuais da sua época, ainda está impregnado na sociedade brasileira?
KM: O mito já desmoronou, mas no imaginário coletivo a ideia de que nosso problema seja social, de classe socioeconômica, e não da cor da pele, faz com que ainda subsista. Isso é o que eu chamo de “inércia do mito da democracia racial”. Ele continua a ter força, apesar de não existir mais, porque o Brasil oficial também já admitiu ser um país racista. Para o brasileiro é, porém, uma vergonha aceitar o fato de que também somos racistas.
CC: O senhor observa alguma evolução nesse cenário?
KM: Houve grande melhora. O próprio fato de o Brasil oficial se assumir como país racista, claro, com suas peculiaridades, diferente do modelo racista norte-americano e sul-africano, já é um avanço. Quando cheguei aqui há 37 anos, não era fácil encontrar quem acompanhasse esse tema. Hoje, a questão do racismo é debatida na sociedade.
CC: O sistema de cotas deve ser combinado com a renda familiar?
KM: Sempre defendi as cotas na universidade tomando como ponto de partida os estudantes provenientes da escola pública, mas com uma cota definida para os afrodescendentes e outra para os brancos, ou seja, separadas. Por que proponho que sejam separadas? Porque o abismo entre negros e brancos é muito grande. Entre os brasileiros com diploma universitário, o porcentual de negros varia entre 2% e 3%. As políticas universalistas não são capazes de diminuir esse abismo. [...] 
CC: A escola brasileira está preparada combater o racismo?
KM: As leis 10.639 e 11.645 tornam obrigatório o ensino da cultura, da história, do negro e dos povos indígenas na sociedade brasileira. É o que chamamos de educação multicultural. As leis existem, mas há dificuldades para que funcionem. Primeiro é preciso formar os educadores, porque eles receberam uma educação eurocêntrica. A África e os povos indígenas eram deixados de lado. A história do negro no Brasil não terminou com a abolição dos escravos. Não é apenas de sofrimento, mas de contribuição para a sociedade.