domingo, 15 de abril de 2012

Meu doce Senhor de chocolate


uma anti-teoria Maia para o fim do mundo

(escrita em 2005)

Ninguém sabe ao certo se foi após ouvir a música de George Harrison que aquele homem, sem ideais de transcendência, resolveu pregar uma peça no mundo. Talvez ele não imaginasse que sua arte fosse causar o fim de tudo. Sim eu escrevo de algum lugar qualquer após o fim do mundo. Ainda estou em minha mente e isso pode ser quase bom. Ao contrário de George, eu nunca quis encontrar senhor nenhum após minha morte. Os vermes sempre me bastaram. Acho digno o fim junto aos vermes, aquela pasta de carne se dissolvendo em água fétida e a dança-festança das bactérias no que restou do corpo. Mas o treco é que não sei como ainda consigo esta unidade, menos ainda como não consigo esquecer a peça que nos levou ao fim do mundo.

Foi primeiro num jornal do interior que a notícia saiu: um homem, ao que parece, um comerciante dedicado ao passatempo da escultura, havia feito uma estátua de chocolate. O que era normal para páscoa, não fosse a figura, a imagem de Cristo. O assunto foi considerado heresia. Às vésperas da Páscoa um Cristo de chocolate sugeria um deboche. Jogava todo o ocidente no mar de consumo do qual sempre se fez imensa força para esconder. Apesar da inevitável clareza da decadência ocidental, não fica bem expô-la assim, sem o menor pudor, num Cristo achocolatado.

O ambiente do Salvador era em ar condicionado. Ele havia nascido num país tropical e como não era possível de fazer nevar nos trópicos, para não derreter, criaram uma atmosfera artificial para sua sobrevivência. O aquecimento global que fosse pro espaço sem fim. Quem precisa estabilidade climática diante de um Cristo de chocolate?

A notícia se espalhou e muita gente pediu para ver o Cristo. Para não dizer que era parcial deixando uns e proibindo outros, ele permitiu a entrada de qualquer um que portasse um dólar, desde que o mesmo fosse deixado numa caixa com a seguinte frase: para manutenção do ar condicionado.

Só se aceitava doações em dólares, pois não se podia pagar para ver um Cristo dessa magnitude com moeda de um país subdesenvolvido. Como era um homem bem intencionado, Avelino abriu um guichê ao lado da porta principal com intuito de trocar a moeda local por dólares. Claro, com um preço um pouco acima do valor oficial, claro, para cobrir os custos da compra do dólar. Aliás, quem quisesse comprar em outras praças a moeda sagrada, podia fazê-lo com base nos princípios do liberalismo, que tornavam o homem cada vez mais humano e ...

O padre local foi até a rádio e ameaçou de ex-comunhão quem fosse em tal visitação. Aquilo não era coisa de católico praticante. Foi bem claro na rádio, para que todos pudessem ouvir:

—...e será inferno para quem for parar lá!

Avelino, ciente que a declaração clerical poderia esvaziar a fila, chamou a rádio e fez uma contra declaração. Disse que sua obra era uma espécie de neo-barroco efêmero. E como tal, era cheio de curvas, mas tentando refletir o que dizia a música de Harrison: tudo passa, tudo passa. Cristo também havia dito isso. Eis a junção das duas coisas no chocolate. Além do mais:

—...30% da renda será destinada a igreja local, a Matriz. — concluiu Avelino no ar.

Diante disso, o padre se viu num impasse e resolveu usufruir do cristianismo. É um bom momento para se perdoar. Então, quem já tinha ido, estava em paz com Deus. Quem ainda pensava em ir, estava liberado. Era apenas uma estátua de chocolate, nada mais. O padre ainda fez uma segunda declaração, onde se cancelava a primeira e deixava claro que:

—...caros fiéis, se é era para uma glória maior, vão até lá, e sem medo. Vão até o Cristo de chocolate.

As filas se multiplicaram e em menos de uma semana foi necessária uma mudança na organização. Era preciso que o local ficasse aberto 24 horas, a demanda era grande de demais. O cofre abarrotava com dinheiro dos ingressos da visitação do Cristo achocolatado, mas foi aí que tudo começou a se acabar.

Uma mulher, vítima de uma doença rara, alegou ter sido curada após ter se alimentado com o chocolate da estátua. Fora uma atitude clandestina, um roubo. Ela havia aproveitado a distração dos seguranças e ultrapassando o cordão de segurança, arrancou um naco de chocolate com os dentes, bem na altura da cintura do salvador. Sim, ela era portadora do vírus da AIDS e foi curada. O chocolate havia pulverizado o invasor, aquele que vinha pela devassidão, pelo sangue podre das seringas dos viciados. Agora ela era pura. Milagre!

O resultado não poderia ser outro: a peregrinação aumentou além da conta, além das possibilidades da cidade. O caso tornou-se internacional. Helicópteros sobrevoavam a cidade, autoridades vinham de todos os lugares. Empresas de chocolate no mundo todo desejavam comprar a patente do Cristo de chocolate. O Vaticano publicou que em breve abriria concorrência. Claro, levaria quem pagasse mais. Porém o dono da estátua lembrou ao Vaticano que a estátua era dele e não da Igreja. O Vaticano respondeu sobre o chocolate não tinha dirietos, mas da imagem de Cristo, era dono absoluto. Os protestantes entraram no rolo, a corte de Haia seria convocada. De quem era o Cristo de chocolate?

A imprensa passou a discutir e documentar exaustivamente o treco. Ninguém mais falava na fome africana, na ditadura da Coréia do norte, na intolerância dos Estados Unidos, na alienação indiana, na corrupção dos governos dos países pobres, do trabalho infantil, das injustiças do poder judiciário por todo o mundo, no tráfico de armas, somente se falava no Cristo de chocolate.

E quando tudo parecia querer normalizar-se, outros milagres eram atribuídos ao salvador feito em guloseima. Só que a irresponsabilidade sempre anda de mãos dadas com a humanidade. Então um jornalista mais sarcástico, em frente ao local da exposição do Cristo, fez a declaração que mudou o mundo: “ ...e assim senhoras e senhores, depois de longuíssimos estudos, alguns antropólogos chegaram a conclusão que a face do Cristo de chocolate é idêntica a de Maóme, talvez o mesmo tenha sido modelo para a criação da estátua. Quem poderá dizer?” Era uma piada que custaria o mundo todo.

Em poucos minutos de circulação, a notícia começou a deixar um rastro de ódio entre na humanidade. O exército da Nestlé resolveu invadir o Vaticano. O Papa havia declarado ser sua, a patente do Cristo, sem negociar, portanto, com indústrias de origem judaica, tal como a Nestlé. Os muçulmanos começaram a se organizar para invadir a cidade sede do Cristo em chocolate, aquilo era uma afronta ao profeta Maomé, que havia sido rebaixado a um modelo de terceira categoria para quem havia feito a estátua.

Cientes que um conflito internacional emanava das entranhas da humanidade, os países produtores de armas resolveram vender o máximo que podiam em artefatos nucleares. Era o momento que o mercado propiciava a venda dessas armas que estavam estocadas há tempos. Hollywood pensou em lançar ao espaço uma estação com capacidade para suportar uma equipe cinematográfica, já estavam pensando num épico com imagens reais, feitas do espaço. Já se falava na maior bilheteria de todos os tempos. Eu não conseguia tirar os olhos da TV que cobria o movimento dos exércitos com precisão digital.

Foi aí que bateram à porta de minha casa e eu fui atender com má vontade. Era um mendigo que pedia algo para se proteger do frio que havia chegado com o fim do outono. Fui até ao armário e peguei uma manta velha. Não tinha tempo para abrir o portão, então joguei a manta por cima dele. Antes que ela alcançasse as mãos do pobre, um clarão tomou conta dos céus e nunca mais consegui dar um passo para trás. Ao que parece, viajo pelo espaço em meio à luminosidade da explosão nuclear, estou na luz, sou um átomo de luz, finalmente encontrei a luz. Não há mais memória. Adeus.