sábado, 22 de outubro de 2011

O curió real



Leonel Nepomuceno era um homem que conheci ainda menino. Tinha um bigode negro sobre uma pele morena, usava óculos e uma boina de guerrilheiro sobre os cabelos. Era um clone do falecido Saddam Hussein. Aposentado, sempre como uma gaiola nas mãos, propagava aos quatro ventos que seu curió era tataraneto de uma ave que pertencera ao Rei Pelé. Logo um pássaro de alta estirpe. Sempre tirava um recorte de jornal do bolso, onde mal se via Pelé com uma gaiola nas mãos, menos ainda o curió que ostentava com orgulho, e ‘provava’ a ancestralidade de seu pássaro a qualquer cético que pusesse em dúvida a nobreza de sua ave. Estava ali, na cara de todos, em pena e osso, um tataraneto do curió de Pelé. Um era a cara do outro. A foto e o artigo no jornal não o deixavam mentir, documento histórico irrefutável.

Outras peculiaridades comprovavam, segundo sêo Leonel, a descendência de seu curió: A) Em dia de jogo da seleção brasileira, o curió assoviava no mesmo tom do Hino Nacional. B) Se alguém se aproximasse de sua gaiola com uma camisa do Corinthians, o curió tinha queimação de estômago. C) Em dia de jogo do Santos, se cantava alegre, ficava claro que o time da Vila estava prestes vencer. Isso ainda lhe conferia mais status, além da nobreza, era um curió profeta.

Sêo Leonel não vendia o curió por preço algum, mas tinha uma tabela para acasalamentos. Se o proprietário de algum curió fêmea quisesse ‘cruzá-la’ com sua ave, ele não só cobrava como queria saber o pedigree do criador em questão: corinthianos, palmeirenses e tricolores que não batessem à sua porta. Seu curió real não iria misturar sua descendência com os principais rivais do peixe da Vila Belmiro. Torcedores de clubes de outros estados eram tolerados. Sêo Leonel ainda afirmava que as várias luas-de-mel de seu curió foram regadas ao som do hino do Santos, executados por sua ‘sonata’, numa rara gravação em vinil da Orquestra Sinfônica do Brasil, em performance exuberante na comemoração do primeiro título mundial do clube.

Em abril de 1984, o curió real subiu aos céus ao apito final de uma goleada de 5 gols do Flamengo no Santos, em pleno maracanã, pela Taça Libertadores. A ‘ave peixeira’ não suportou a humilhação da goleada. Em meio ao luto, e cheio de desejos de vingança, Sêo Leonel lançou uma maldição sobre o futebol brasileiro. Com habilidades até então secretas nos malefícios do vodu, preparou um boneco rubro-negro e lhe cravou espinhos e agulhas. Verdade ou não, o futebol brasileiro perdeu, dois anos depois, a copa de 1986, no México, quando o rubro-negro Zico desperdiçou o fatídico pênalti contra os franceses. Acredito piamente que a maldição da França começou ali, com o boneco vodu do Sêo Leonel, e teve seu ápice na copa de 1998. Ronaldo, não menos flamenguista, teve algo que nunca descobrimos o que foi, mas o suficiente para causar uma tragédia em três cocos em nossas cabeças. Final: França 3 X 0 Brasil.

Em fevereiro 2001, Sêo Leonel morreu. Seguiu o rumo de seu curió real. Deixou saudades, não havia quem não gostasse dele, suas histórias faziam a meninada sonhar de olhos abertos e acreditar na possibilidade de se controlar o universo com vodus e cantos de curiós reais.

Na Missa do Galo de 2001, encontrei com a esposa dele, Dona Maria Silva de Nepomuceno. Ela se lembrou de mim e eu não evitei comentar sobre as histórias de seu falecido marido; o espírito de Natal nos permitiu lembranças alegres. Então lhe perguntei:

— ...a senhora se lembra do boneco vodu do flamengo que ele fez?

Se lembro! Queimei ontem. Ano que vem tem Copa.

Coincidência, ou fim do malefício, em 2002, o Brasil se sagrou Penta Campeão na Coréia e com ressurreição de Ronaldo Fenômeno. A maldição havia passado.

Depois o tempo passou e fiquei curioso: o vodu de sêo Leonel só não afetara a copa de 1984, nos EUA, onde Romário, Dunga e CIA venceram a Itália por 0 x 0. Vitória com gosto de empate, semi-maldição. Então confesso: em 2006 fiz um vodu do Roberto Carlos. Deu no que deu. Mal eu sabia que ele tinha validade até Felipe Mello 2010. Depois dos dois cocos holandeses, incinerei o boneco ao som do Hino do Santos. Sêo Leonel, onde estiveres, perdoe-nos, meu bom homem. E lembre-se: em 2014 a copa é aqui, final no Maracanã, palco rubro-negro.