É um espírito vazio de si mesmo que se
tornou uma imagem fantasmagórica que vaga pelas florestas equatoriais sul-americanas,
perdido num tempo sem tempo, num espaço imemorial do futuro/passado pré-cosmogônico,
onde tudo ainda não começou ou já foi destruído. E deveras reina o caos. É
assim que os índios no alto rio Amazonas interpretam a fotografia.
Mais isso é muito mais do que uma
simples análise dos efeitos do daguerreótipo na racionalidade mitológica indígena
sobre as estranhas mágicas praticadas pelos homens brancos e seus souvenires tecnológicos.
- Na Amazônia peruana, Chullachaqui é um espírito que aparece para os solitários
que se perdem na floresta, ele tem um pé diferente, um pé de cabra, e ilude sua
vítima a ponto de fazê-la desaparecer em espaços vazios do mundo.
Nossa sociedade modernizada também
produz os seus "chullachaquis" através das infinitas fotografias
produzidas pelas câmeras dos celulares, daguerreótipos digitais, postados a exaustão
nas redes sociais. Imagens vazias, legendadas por frases que vão desaparecendo
lentamente até que mergulharão na ausência total de significado. Fantasmas e
mais fantasmas multiplicando-se num mundo com uma profunda ausência de palavras.
- Seria esse o sonho de Wittengeistein: um lugar onde as várias camadas de
subjetividades que envolvem as palavras são dissolvidas por Chullachaquis, só
restando, por fim, imagens, denotações multicores de fantasmas expostos e
apresentados por sinais polidos a exaustão a ponto de tornaram-se placas/esculturas/palavras?
Em tempos de evolução da tecnologia e da
bio-química, a longevidade tem se tornado uma característica marcante dessa
sociedade digital, onde o corpo vem vencendo o tempo. Porém o cérebro parece não
conseguir acompanhar esse 'puxadinho' de vida 'biológica'. É a dança de milhões
e milhões de pessoas com Alzheimer e outras doenças mentais que nos transformam
em Chullachaquis modernos. No auge da doença, sobra apenas uma imagem de alguém
que já existiu e que perde, lentamente, o passado e se despede do futuro. Em
pouco tempo já não sabe mais quem é e nem o que deve fazer. Só restam a imagem,
o silêncio e o caos mental. As palavras se tornam grunhidos. Não há esperanças
ou uma subjetividade mínima que possam consolar o que se falta a 'viver' nesse
puxadinho possibilitado pela bio-química.
Alguns mais aficionados pelo mundo da
mitologia dirão que os Chullachaquis resgatam as pessoas de seus mundos pasteurizados
e acromáticos, salvando-os de uma destruição
causada pela insignificância e os apresenta à chacrona, planta
alucinógena usada em chás amazônicos. Ao bebê-la, dissolvida no chá, o
solitário se projeta em alucinações no interior da metafísica indígena que dá
sentido à vida. Por isso esses mitos 'tricksters', (traiçoeiros), preferem os
corações abandonados que até já pensaram em vender a própria alma aos infernos,
em troca de alguma dose de hedonismo pulsante nesse mundo 'concreto' que se 'liquefaz'
dia após dia. - Se Immanuel Kant criou a Crítica da razão Pura, os xamãs
amazônicos criaram a Análise do Padrão Psicodélico Puro, pois a divindade que
habita o princípio ativo da chacrona, em tese, criaria alucinações padronizadas.
Ao decodificá-las e entendê-las encontraríamos o sentido da vida.
O Coiote, Macunaíma, Loki, Chullachaqui,
entre outros, são tricksters, espíritos traiçoeiros que nos ajudam a evoluir espiritualmente
enquanto também evoluem porque nascem sem caráter, mas com uma propensão gigantesca
às traquinagens e molecagens. Isso se dá, grifo nosso, em função de uma
ausência de uma consciência histórica linear. Esses seres não contam o tempo de
forma binária e em somatória acumulativa escatológica. - Estar sempre no mesmo
espaço natural, a floresta, contando o tempo através das luas, torna o índio
amazônico o campo da batalha entre o bem e mal desprovido de parâmetros, paradigmas,
axiomas e caracteres racionais históricos; eis o puro feeling em ação.
Afinal, cada animal é um aspecto da alma
humana que vagueia pela Terra e ao defrontar-se consigo mesmo, a todo instante,
na busca pela essência das coisas, não pode a alma ser encontrada em algo
mediado por uma moral positivada pela razão de um tempo histórico tradiconal. O
relativismo latitudinário ilimitado da psicodelia advinda da chacrona torna-se
a única chave de abertura para um mundo que não é um mundo, um sentido que não
é um sentido, mas que fará dos seres da florestas algo mais puro e benéfico ao
próprio universo, pois afinal dissolver-se-ão
no âmago insondável da irracionalidade e quem sabe, da felicidade. Assim é,
assim seja.
Mazel Tov.