quarta-feira, 1 de março de 2017

O 'Chullachaqui'


É um espírito vazio de si mesmo que se tornou uma imagem fantasmagórica que vaga pelas florestas equatoriais sul-americanas, perdido num tempo sem tempo, num espaço imemorial do futuro/passado pré-cosmogônico, onde tudo ainda não começou ou já foi destruído. E deveras reina o caos. É assim que os índios no alto rio Amazonas interpretam a fotografia.
Mais isso é muito mais do que uma simples análise dos efeitos do daguerreótipo na racionalidade mitológica indígena sobre as estranhas mágicas praticadas pelos homens brancos e seus souvenires tecnológicos. - Na Amazônia peruana, Chullachaqui é um espírito que aparece para os solitários que se perdem na floresta, ele tem um pé diferente, um pé de cabra, e ilude sua vítima a ponto de fazê-la desaparecer em espaços vazios do mundo.
Nossa sociedade modernizada também produz os seus "chullachaquis" através das infinitas fotografias produzidas pelas câmeras dos celulares, daguerreótipos digitais, postados a exaustão nas redes sociais. Imagens vazias, legendadas por frases que vão desaparecendo lentamente até que mergulharão na ausência total de significado. Fantasmas e mais fantasmas multiplicando-se num mundo com uma profunda ausência de palavras. - Seria esse o sonho de Wittengeistein: um lugar onde as várias camadas de subjetividades que envolvem as palavras são dissolvidas por Chullachaquis, só restando, por fim, imagens, denotações multicores de fantasmas expostos e apresentados por sinais polidos a exaustão a ponto de tornaram-se placas/esculturas/palavras?
Em tempos de evolução da tecnologia e da bio-química, a longevidade tem se tornado uma característica marcante dessa sociedade digital, onde o corpo vem vencendo o tempo. Porém o cérebro parece não conseguir acompanhar esse 'puxadinho' de vida 'biológica'. É a dança de milhões e milhões de pessoas com Alzheimer e outras doenças mentais que nos transformam em Chullachaquis modernos. No auge da doença, sobra apenas uma imagem de alguém que já existiu e que perde, lentamente, o passado e se despede do futuro. Em pouco tempo já não sabe mais quem é e nem o que deve fazer. Só restam a imagem, o silêncio e o caos mental. As palavras se tornam grunhidos. Não há esperanças ou uma subjetividade mínima que possam consolar o que se falta a 'viver' nesse puxadinho possibilitado pela bio-química.
Alguns mais aficionados pelo mundo da mitologia dirão que os Chullachaquis resgatam as pessoas de seus mundos pasteurizados e acromáticos, salvando-os de uma destruição  causada pela insignificância e os apresenta à chacrona, planta alucinógena usada em chás amazônicos. Ao bebê-la, dissolvida no chá, o solitário se projeta em alucinações no interior da metafísica indígena que dá sentido à vida. Por isso esses mitos 'tricksters', (traiçoeiros), preferem os corações abandonados que até já pensaram em vender a própria alma aos infernos, em troca de alguma dose de hedonismo pulsante nesse mundo 'concreto' que se 'liquefaz' dia após dia. - Se Immanuel Kant criou a Crítica da razão Pura, os xamãs amazônicos criaram a Análise do Padrão Psicodélico Puro, pois a divindade que habita o princípio ativo da chacrona, em tese, criaria alucinações padronizadas. Ao decodificá-las e entendê-las encontraríamos o sentido da vida.
O Coiote, Macunaíma, Loki, Chullachaqui, entre outros, são tricksters, espíritos traiçoeiros que nos ajudam a evoluir espiritualmente enquanto também evoluem porque nascem sem caráter, mas com uma propensão gigantesca às traquinagens e molecagens. Isso se dá, grifo nosso, em função de uma ausência de uma consciência histórica linear. Esses seres não contam o tempo de forma binária e em somatória acumulativa escatológica. - Estar sempre no mesmo espaço natural, a floresta, contando o tempo através das luas, torna o índio amazônico o campo da batalha entre o bem e mal desprovido de parâmetros, paradigmas, axiomas e caracteres racionais históricos; eis o puro feeling em ação.  
Afinal, cada animal é um aspecto da alma humana que vagueia pela Terra e ao defrontar-se consigo mesmo, a todo instante, na busca pela essência das coisas, não pode a alma ser encontrada em algo mediado por uma moral positivada pela razão de um tempo histórico tradiconal. O relativismo latitudinário ilimitado da psicodelia advinda da chacrona torna-se a única chave de abertura para um mundo que não é um mundo, um sentido que não é um sentido, mas que fará dos seres da florestas algo mais puro e benéfico ao próprio universo, pois afinal  dissolver-se-ão no âmago insondável da irracionalidade e quem sabe, da felicidade. Assim é, assim seja.
Mazel Tov.