quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Sangue de coca-cola


Eu ainda vou à banca de jornal e no caminho, dias desses, me deparei com dois jovens, além de estarem modernamente mal vestidos, tinham expressão de que estavam à toda velocidade, senhores do mundo. Gesticulavam ao ritmo de uma música que eu não ousaria chamar de arte e, pra piorar o enredo, tinham uma lata de coca-cola nas mãos.
A imagem da própria decadência pós-moderna concretizada me causou um insight, um fiat lux! Esse xarope gaseificado corroeu a Civilização ao longo do século XX. Ficamos deformados, tanto fisicamente, quanto moralmente, com o consumo em escala industrial desse veneno.
A história da Civilização Ocidental Mediterrânea, Grécia e Roma antigas, foi escrita ao sabor do vinho. As mais profundas linhas de raciocínio, as maiores investigações sobre a condição humana e seu sentido sobre a Terra, desenvolveram-se ao redor de uma garrafa de vinho tinto mediterrâneo. O Homem despertou para a harmonia entre o corpo e a beleza da arte, mais as apreciações do espírito e suas especulações provindas dessa bebida divina; a filosofia nasceu do vinho. A Humanidade greco-romana seguiu o fluxo da bebida garganta adentro, em busca de um significado para si mesma. Até os deuses do Olimpo bebiam o vinho.
A coca-cola, por sua vez, foi criada no final do século XIX, nos EUA, e logo se espalhou pelo mundo. O xarope foi idealizado para se encaixar, comercialmente, aos hábitos antialcoólicos dos puritanos, que são a essência da colonização estadunidense. Em função dessa estranha obsessão de agradar a Deus, através de um estoicismo tosco, o protestantismo, pode-se dizer, foi a motivação da criação de um dos maiores venenos da humanidade. Seria uma vingança do Deus único, hebreu, contra o politeísmo grego-romano?
O xarope deformante chegou à Europa antes da 1ª Guerra Mundial e se espalhou com mais força após o final do conflito. Fernando Pessoa, em 1928, escreveu um slogan sobre a bebida, “primeiro estranha-se, depois entranha-se!”. O poeta estava certo, tanto em seus hábitos pessoais, aproximando-se mais do conhaque e mantendo-se em total distância do xarope, quanto na profecia do futuro da própria civilização, que iniciaria sua decadência com a intoxicação de suas entranhas pelo veneno não-alcoólico puritano.
Antes da 2ª Guerra Mundial, a coca-cola passou a ser consumida em larga escala na Europa. Quando os EUA entraram no conflito, a coca-cola autorizou que os soldados americanos pagassem pelo refrigerante o equivalente ao preço de custo. A bebida, além de um consolo, os tornava 'super-homens', afinal, essa é a finalidade do açucar. Na Alemanha, na mesma época, a importação da coca-cola foi proibida. O resultado do embargo foi a criação, pela própria empresa da coca-cola, da Fanta Laranja, só para abasteceminto do mercado germânico.   
Findada a 2ª Guerra, o consumo se alastrou ainda mais no mundo, e a coca-cola venceu todas as barreiras, nem mesmo os países islâmicos conseguiram ficar imunes. E quanto mais os EUA, o berço da criatura açucarada, consumiam a bebida, mais se tornavam beligerantes, obesos, paranóicos, consumistas e decadentes e sem a menor vergonha nas dezenas de invasões e propagações de guerras pelo mundo afora.
No Brasil, a coca-cola passou a ser consumida em 1942, às vésperas da 2ª Grande Guerra. Em termos culturais, pode-se dizer que a Semana de Arte Moderna de 1922 teve a felicidade da ausência desse chorume e assim descobriu um Brasil intocado, o guaraná no coração da floresta amazônica, que nunca conseguiu seu devido lugar em nossa cultura. Já o Concretismo foi inspirado e entranhado à base de coca-cola, com falsos ares de pós-modernidade e uma aceitação passiva do lixo como inspiração, ‘a coca da cloaca, beba!’.
A beligerância do mundo, o recrudescimento da direita, o funk, o crack, a mídia, a ilusão do neoliberalismo, o cinema fast-food, a morte do teatro, o facebook, o vazio da juventude serão sintomas do consumo da coca-cola? Afinal, com bilhões de pessoas bebendo milhões de litros desse veneno, é inevitável a poluição do sangue ocidental que irriga a massa de cérebros que forma o senso comum. E não há mente que resista a um fluído que mais parece o rio Tietê, e está a milhares de quilômetros de distância da pureza de um licor dionisíaco, capaz de fazer a humanidade celebrar uma estética despoluída de mediocridade. Evoé, Baco!!