domingo, 30 de março de 2014

O ácido ribonucleico inconsciente e coletivo


Bertrand Russel declarou que despertou para a vida aos 12 anos, quando disse pra si mesmo, “eu sou eu!”. Após dizer essa frase, sentiu como quem havia saído de uma névoa. Imediatamente, questionou consigo mesmo sobre o que ele teria sido antes de se entender como indivíduo. A primeira caverna de um homem é sua mente, sua consciência, que começo a compreender, não pode ser abandonada assim, sem mais nem menos.
Todos nós temos essa mesma visão, esse insight. O meu foi quando eu tinha 4 anos. Olhei os dedos esticados diante de mim e disse também, “eu sou eu!”. Só que não pensei de onde tinha vindo, mas sim pra aonde iria dar aquela existência à minha frente. A primeira sensação que tive, ao me descobrir, foi a de felicidade. Santa inocência.
Segundo Jung, há uma força no cosmo, algo energético que se manifesta em nós através dos arquétipos. Ele chamou a isso de Inconsciente Coletivo, essa vasta memória imemorial que nos faz comportarmo-nos, de repente, como se sempre soubéssemos o que é ser um pai, uma mãe, um artista, um feiticeiro, um mártir, um herói, um vagal, uma bruxa. Somos o canal por onde essa força inconsciente e coletiva vem ao mundo, e nossa consciência é quem pode domá-la. Quando ela é forte por demais, o indivíduo conhece a loucura.
Cristo pode ser entendido como alguém que foi possuído pelo arquétipo do mártir, e num profundo amor universal, não viu outra saída senão destruir-se para que, em partículas atômicas, possibilitasse a continuidade de seu amor em cada um daquele que viesse a se encantar por sua história. Em outros termos: foi o Avatar do amor universal. Ghandi, Martin Luther King, Buda foram também, a seu modo, Avatares desse mesmo amor universal.    
Pensando coisas do tipo, me veio à cabeça a ideia de um DNA à base de ruínas, um solo onde várias outras ‘civilizações’ se edificaram. Quando digo civilizações, me refiro, poeticamente, aos outros animais, nossos ancestrais, que nos legaram o ácido ribonucleico, abarrotado de um inconsciente coletivo visceral e selvagem. - O primeiro unicelular não disse “eu sou eu!”, simplesmente existiu, fruto de um choque elétrico entre os gases primordiais. Por sua vez, o primeiro primata bateu no peito e deve ter sentido que aquele mundo seria dele. Já se passaram 50 mil anos de domínio do Homo Sapiens sobre a Terra e ele ainda não conseguiu entender que veio do barro, do pó, da água; que foi ‘levantado do chão’.
Mas não quero divagar sobre a origem da vida de maneira aristotélica, através das especulações de um motor imóvel e primordial. Me situarei numa manhã mais ‘próxima’ de nós, ocorrida a 125 milhões de anos, quando o ancestral único dos mamíferos surgiu, nos escombros do Jurássico. Esse marsupial se dividiu em vários grupos e subgrupos e quanto mais se dividia, mais variações criava do verbo existir. Da multiplicidade se fez a luz.   
Farley Mowat, um escritor canadense, em seu livro, Uma Baleia Para Matar, fez uma bela comparação entre o ancestral único dos primatas e dos cetáceos. Os dois, que vieram de um único marsupial, caminharam juntos sobre a Terra. Mas o ancestral dos cetáceos, talvez ouvindo o chamado primordial da água, retornou para o mar. Esse sim, se ‘re-ligou’ à sua fonte original.
Já o ancestral dos primatas se jogou no mundo, ouvindo o chamado do que era novo e, bem provável, tomado por um sentimento de posse, de controle sobre as forças naturais, moldou o mundo à sua vontade, logo um criador, também, de patologias. A diferença entre o Homem e os Cetáceos, sobretudo com as Baleias, é que esse último é tomado por uma compaixão, por uma incapacidade de vingar-se e causar violência gratuita, enquanto o outro, bípede e de cérebro avantajado, é senhor de guerras, ganâncias, hipocrisias e de descompasso consigo mesmo.
O canto triste das baleias sempre me impressionou. Impregnado de uma profunda saudade, tão antiga quanto o tempo, clama, ao Homem, acredito, que retorne ao mar e que definitivamente se esqueça dessa história de domínio. Se pudéssemos decodificar o canto, talvez viéssemos entender a mensagem: “...já fui um unicelular, depois um réptil, depois um marsupial, depois algo parecido com um cão e hoje sou um cetáceo e amanhã, serei só inconsciência. Vem, eu estou te esperando, um amor intracelular nos liga!”. Se de novo houver um Cristo no mundo, não com sua memória individual, não no sentido escatológico, mas no sentido do amor a tudo que o cerca, só poderá se concretizar, universalmente, num cetáceo. O próximo Avatar de Cristo será uma baleia.
Penso, mais literariamente do qualquer outra coisa, que o Inconsciente Coletivo é alimentado por nossas consciências individuais e vice-versa. Um introjeta o desejo do outro e o remete de volta, num fluxo constante de ação e reação. E como no universo nada se perde, e por vezes, tudo desperta, inicia-se a história de vida consciente dos indivíduos que somos.  
O que era o inconsciente coletivo antes de despertarmos para nossas individualidades? Uma força estagnada, perdida em repouso no tempo, até que foi acordada pelos anseios dos seres materiais que iniciaram sua longa jornada evolutiva consigo mesmos, e passaram a produzir esse substrato que chamamos de pensamento? Desencadeado o processo de consciência individual, o “eu sou eu!” dito por todos os cantos da Terra, se torna um mantra da individualidade, que num paradoxo, desencadeia profundos desejos de ter autoconsciência, na busca de uma consciência maior.
Ou o Inconsciente Coletivo só passou a existir quando a matéria se transmutou nisso que conhecemos e chamamos de Vida? 

  

quinta-feira, 27 de março de 2014

Animais, deuses e trapaceiros


Somos insignificantes. Não sabemos o que se passa na mente de um simples cachorro, de um grilo, de um vaga-lume, menos ainda o que as formigas pensam. Nossos próprios pensamentos nos são desconhecidos. Quem é aquele que eu vejo diante do espelho e que envelhece sem minha permissão, dia a dia? Quem são esses que formam minha família? Quem são os estranhos que nunca conversaram comigo?
Desconhecemos o interior de um computador, seus desejos e mecanismos e sua capacidade de processar. Apenas vislumbramos em sua tela, os códigos que ele permite que olhemos. Das entranhas de um automóvel, pouco sabemos sobre sua dinâmica. A relação de alteridade que cada peça tem com a outra, para que o movimento se dê, livre sobre o asfalto, enquanto rola Pink Floyd no CD, nos é um mistério. - Mesmo desconhecendo o mecanismo do automotor, meu pensamento pode ir longe, divagar muito além do ‘deus me livre’, enquanto descanso minha carcaça no confortável banco reclinável e olho a paisagem a zunir.
Quando olhamos uma estante de livros, quantos deles desconhecemos profundamente e nunca, sequer, lhes tocaremos o dorso. E ainda mais: os horizontes dentro de suas páginas serão sempre uma luminosidade que manter-se-á distante de nossas mentes, destinadas ao calabouço das trevas que edificamos com a nossa ideia que sabemos de tudo e o pior, de que temos opinião formada por bases sólidas. Somos seres abissais, mergulhados na própria percepção binária, ‘criadores’ de verdades universais impositivas, por vezes, fascistas.
Não sabemos o que existe além do Sistema Solar e fora especulações e fotografias turvas, estamos abandonados no que achamos ser o infinito. Olhamos pra Lua e não sabemos muito sobre esse satélite; o mar diante de nossos olhos, habitado por seres que nunca, jamais, possivelmente, venhamos a conhecer, é ainda um grande amigo desconhecido.
Mas há quem diga que conhece os mistérios do mundo só porque lê mil páginas à noite. Há ainda outros que afirmam, categoricamente, que conhecem a verdade e dela são fiéis procuradores, e podem, assim, vendê-la, otimizá-la, transformá-la num estandarte de símbolos e teorias fabricadas. No fundo isso tudo é só a corrupção da fantasia humana.   
Porém, os piores homens são os picaretas que aparecem na televisão, católicos e evangélicos, e que berram sobre o quê se passa na cabeça de Deus, diante de uma massa anestesiada, que ouve impassível sobre o desfile do ‘pensamento’ de Deus finalmente ‘traduzido’. Como é que esses caras sabem o que se passa na cabeça de Deus? Simplesmente porque leram um livro, escrito por outros homens, há mais de 3.000(?) Ou só porque sabem ‘tudo’ da mitologia judaica, logo conhecem Deus intimamente (?)
Como diria o poeta, tudo isso é um grande caô. Mostrar-se absolutamente confiante ao discursar sobre o que se passa na cabeça de Deus, torna o produto mais confiável, assim ele vende bem, e muito. E a consequência disso e o enriquecimento dos fariseus, em batina e/ou terno e gravata, para saborear as delícias da boa e velha materialidade do mundo. Conforto material adquirido com ganância e estelionato teológico. 
Daqui alguns dias, Jesus será crucificado novamente. Claro, em termos simbólicos. Vai pra cruz somente com uma túnica, sem nenhum tostão no bolso e sem ter construído nenhum templo que viesse a extorquir dinheiro de seus fiéis. Mal ele sabia que, nesses 2000 anos, seria ‘seguido’ por uma horda de sepulcros caiados que usaria sua imagem para alcançar poder e riqueza. Apesar de ter o coração cheio de amor, ele não tinha ideia do que fazia. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

O sentido da vida


Os elefantes partem para seu cemitério quando sentem que a vida chegou ao fim. E o que fizeram de bom para que ela possa ter algum significado? Inevitável, somente os elefantes podem responder a essa pergunta, nem sei o porquê de fazê-la. É que fiquei intrigado: ao terminarmos com o tempo que nos foi permitido, o quê devemos saber sobre a vida, o que devemos levar em nossas mentes ao além-desconhecido?
Qual a importância das equações de 1º grau para quem está prestes a bater as botas? Ou mesmo as precisas citações do Código Civil? Ou a escalação do Corinthians, ‘o desclassificado’, do último campeonato paulista?  Ou até mesmo saber qual a importância de Duque Caxias para o exército brasileiro? E quem saberia me explicar qual o significado das reuniões administrativas que partem de lugar algum para alcançar o nada? Ou mesmo da ideia de se saber que há ETs por toda a parte, vislumbre perene de lunáticos?
Acredito que Moisés escondeu o décimo primeiro mandamento, que dizia o seguinte: “Prepararás a caipirinha perfeita: gelo, limão, cachaça e açúcar, os quatros sagrados elementos em equilíbrio, para glória maior de seu irmão-marido, que haverá de bebê-la”.  Minha esposa é herdeira dos segredos judaicos da cabala e sabe preparar a caipirinha perfeita.
Acho que é esse tipo de tecnologia que devemos levar conosco pras cidades flutuando no espaço, ao redor da Terra, como dizem os Kardecistas. Aí sim, será um prazer habitá-las, e isso graças ao aumento das chances de se beber uma caipirinha. Conhecimento levado da Terra para os homens santos do espaço.
Entenderam agora a importância de se saber preparar uma bela bebida? Isso pode mudar a qualidade de vida do além. Samba, suor e caipirinha. Não quero adentrar na seara dos petiscos, mas uma caipira, à mercê de um filé a palito, pode edificar o paraíso nas papilas degustativas e por vários minutos. Um orgasmo para o paladar.
Se Jesus tivesse um pouco mais de tempo para preparar a última ceia, teria servido caipirinha no lugar do vinho e com o pandeiro nas mãos, entoaria o samba de Adoniram Barbosa, “...não posso ficar, mais nenhum um minuto com você, sinto muito amor, mas não pode ser!”. Judas no cavaco, Maria Madalena no reco-reco e Pedro no bumbo, dariam o toque de paixão de carnaval.
E antes do galo cantar, no momento da sétima caipirinha, Jesus iria se levantar e dizer: “...um de vocês vai me trair!”. E antes mesmo que terminasse a frase, Judas seguiria Maria Madalena até a cozinha, onde os torresmos estariam prestes a mergulhar na gordura quente, e a couve adormecida sobre a pia, em breve abençoada pela música de Chico Buarque a soar no rádio, e a beijaria sem nenhum pudor. E tanto que seria o ardor que a abraçaria como se fosse a última, como se a morte viesse com uma horda de romanos para levar seu mestre e irmão ao flagelo da cruz.
Cristo morreu no sábado, na contramão, atrapalhando o tráfego, sem erguer paredes sólidas de templo algum, sem forças para pedir ao pai que afastasse dele esse ‘cale-se’, que normalmente os homens de negócios impõem aos mortais goela a baixo, todo o dia.
A Judas só coube o exílio, e um eterno autoflagelo ao cantar, todas as noites, nos botecos da vida, o samba canção: “..lábios que beijei!”. E sofrer ‘ad infinitum’ por toda a vida, por ter beijado a mulher de seu irmão, com a idea de que o amava tanto quanto Madalena, e isso o transformou num homem louco, por consequência, num santo.
Violões, caipirinhas, Madalenas, beijos, Judas e Buarques: o que há mais pra se fazer nessa vida?                                             

quinta-feira, 13 de março de 2014

A saúde mental


Alguns baluartes da patética direita brasileira têm profunda fixação em destruir tudo o que nos faz felizes, que nos liberta. Aquele que afirma que o país tem muitos feriados, que o Carnaval é um desperdício, o futebol um ópio, o samba coisa da senzala e o rock, uma proposta de drogados, deveria fazer mais sexo saudável, tomar um bom vinho e dançar o frevo das ruas.
Toda festa coletiva tende à Catarse, que em grego quer dizer purificação. Uma limpeza da alma, uma descarga, um alívio pelas bobagens acumuladas ao longo do ano. Vital para a saúde mental da coletividade, o Carnaval, é o berro daqueles que estão cansados de tanta mediocridade, da manutenção de um discurso medieval cristão que ocupa, quase que na integridade, os canais abertos de televisão.
Líderes evangélicos e católicos se comportam como vampiros que sugam o sofrimento alheio, estimulando em tempo integral a culpa alheia. Um rebanho em estado de culpa faz doações generosas. Assim o Carnaval é o alho nos olhos dessa ‘vampiragem’.
Indivíduos que extravasam suas dores ao som do bumbo, num berro pelo salão, “...vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval!”, numa contradição, após o festejo, podem até ser mais produtivos do que aqueles que se escondem em retiros espirituais para bajular o Senhor. Concordo plenamente com o poeta Guilherme Puppo Falconni que, em seu Livro Último, diz que Deus vai sempre tomar ‘umas’ nos botecos, canta Noel Rosa e odeia os bajuladores de plantão.
Se não fosse o Carnaval, quanto a sociedade e o Estado não gastariam com terapia? E é na festa da carne, do italiano, carne vale, que podemos errar sem medo, pois estamos sobe as bênçãos do deus Dioníso. Melhor, evidente, que venhamos a errar com a camisinha no lugar certo. Chico Buarque, em sua canção, Meu Caro Amigo, afirma categoricamente que, “...sem uma cachaça e um cigarro ninguém segura esse rojão”. O ‘rojão’ da dura realidade cotidiana, alimentado pelos discursos de homens de negócios, que pouco se importam com a felicidade alheia, perde importância diante dos foliões mascarados.
O Carnaval e igual ao ENEM, só faz bem à classe média sufocada pela elite que não aceita abrir mão de privilégios exacerbados e defendidos com a velha retórica conservadora de direita, a mesma que embala o fascismo recrudescente. Quem não gosta de Carnaval, não gosta de nossas morenas, padrão FIFA, sacudindo os quadris aos sons dos tamborins. E isso é uma pena! 
Muito melhor do que gastar com armas, é se deixar levar pelo espírito da folia. Os Beatles sabiam disso e fizeram da vida um tipo de Carnaval, só que no lugar do trio elétrico, seguiam pelas ladeiras da vida num Submarino Amarelo. No mais, ...ALL IS NEED IS LOVE! ALL IS NEED LOVE!