domingo, 19 de julho de 2015

O fantasma da lata


O sol estava a pino e não havia vento algum. Uma lata velha de cerveja deslizou sozinha sobre a calçada e fez um tímido ruído. Um fantasma tropical age assim mesmo, no meio da luz despudorada do dia. Mas o fato dele ter desencadeado esse movimento na lata, provocou em mim uma tentativa de compreender os pensamentos que estão dentro de minha cabeça. São sistemas intracranianos de palavras e galáxias de metáforas que compõem o ser que sou. Quantas ilusões, mentiras, simulações, esquecimentos formam o epicentro do comando do Eu sobre mim mesmo? Eu não saberia dizer. Apenas sei que altero a realidade, dentro de minhas possibilidades, e isso me torna um ser concreto e real.
Claro, sofismas ocorrerem, preferencialmente, na linguagem, mas nos acalantam. Brotam de um espaço real do cérebro. Às vezes o que é lógico também só ocorre nos tramites dos conceitos subjetivos que exalam significados. Mas isso não impede que ninguém venha a alterar e/ou criar realidades. Quando a realidade não é alterada por nós, independentemente de sermos seres à base de silogismo e/ou sofismas?
A própria não-ação de Buda é um ação. Mesmo que eu venha a dizer que: ”...nada poderá mudar o mundo em que eu vivo, pois mergulho sempre em meditações”, de nada me adiantará esse não movimento se ainda estiver envolto em memórias e, diante delas, identificar coisas especiais habitando os vastos territórios virtuais do cérebro. Mergulhado numa suposta não-ação, olhando minhas memórias como se elas fossem um cenário de um filme, me encontro na ‘ação’ de um observador. Se eu for muito fenomenológico nesse ‘cinema de memórias’, Freud me explicará assim ou assado, como fruto de frustrações; se for niilista o suficiente para explodir os altares, Nietzsche me dirá que sou a corda que fluiu do macaco; se eu for frio e impassível o bastante para seguir em paz, serei um ser desprovido e desconectado do inconsciente coletivo, um sociopata, segundo psicanálise moderna. − Um sociopata está ligado a qual parte do inconsciente coletivo?
Estamos nos movendo em direção a um mundo desprovido de personalidades híbridas, enquanto aceitamos, passivamente, a produção em série de patologias digitais coletivas. Mas independentemente daquilo que somos, alteramos a realidade. Assim a filosofia e suas intenções de revelar algo lógico naquilo que nos cerca, é, na realidade, um molde, uma forma sofisticada de alinhamento de fluxos de pensamentos com algo ideal e nem sempre concreto.
Quero chegar num lugar pouco confortável: de fato, segundo a psiquiatria, conseguimos mudar o mundo, reformá-lo, revolucioná-lo, mesmo que seja com as parcas ilusões que cultivamos em nossa mente. Seja num bloco de sofismas, num maço de verdades lógicas, ou num agregado de metáforas, inexoravelmente, podemos alterar a realidade e assim seremos reais para todo sempre. Mas não estamos sozinhos nessa jornada: os alcaloides nos fazem aderir ao processo com terno e gravata; a cannabis sativa nos leva à contemplação das ruínas ocultas por detrás da decoração do mundo do consumo digital e das redes sociais; os antidepressivos nos acoplam ao discurso cristão retrô-auto-repressivo; o vinho nos leva à mitologia grega e às aventuras sexuais e a uma porção de tranquilidade o suficiente para ouvirmos um LP do Pink Floyd. – Continue brilhando, louco diamante.
As substâncias são nossas vozes, os heterônimos, o jardim no País das Maravilhas onde nossos lamentos sobem em direção à lua. Não podemos mentir. É facil de se entender que este é o pior dos destinos: o de sempre alterar a realidade. O pior castigo dos deuses sobre a raça humana é a impossibilidade de mentir sobre nossa ação sobre o mundo concreto. Criamos os seres que nos amaldiçoaram ao longo do tempo e que permanecem entre nós e o Céu despudorado das liberdades. Não podemos mentir sobre o agir! Quantas vezes diremos isso com a ideia de que um dia seja uma mentira libertadora? Deveras não podemos mentir sobre sempre sermos reais e alterarmos, constantemente, o mundo concreto ao nosso redor. Eis o motivo da arte, da religião e da filosofia agirem da mesma maneira e com o mesmo método; talvez sejam até a mesma coisa quando se convertem em negócios lucrativos muito rapidamente. Não há sofismas no mundo da ação! 
Esse é o segredo dos lunáticos que conseguiram se apoderar do mundo. Inegavelmente, eles vivem dentro de nós.