O sol
estava a pino e não havia vento algum. Uma lata velha de cerveja deslizou
sozinha sobre a calçada e fez um tímido ruído. Um fantasma tropical age assim
mesmo, no meio da luz despudorada do dia. Mas o fato dele ter desencadeado esse movimento na lata, provocou em mim uma tentativa de compreender os pensamentos que estão
dentro de minha cabeça. São sistemas intracranianos de palavras e galáxias de
metáforas que compõem o ser que sou. Quantas ilusões, mentiras, simulações,
esquecimentos formam o epicentro do comando do Eu sobre mim mesmo? Eu não
saberia dizer. Apenas sei que altero a realidade, dentro de minhas possibilidades,
e isso me torna um ser concreto e real.
Claro,
sofismas ocorrerem, preferencialmente, na linguagem, mas nos acalantam. Brotam de
um espaço real do cérebro. Às vezes o que é lógico também só ocorre nos
tramites dos conceitos subjetivos que exalam significados. Mas isso não impede
que ninguém venha a alterar e/ou criar realidades. Quando a realidade não é
alterada por nós, independentemente de sermos seres à base de silogismo e/ou
sofismas?
A
própria não-ação de Buda é um ação. Mesmo que eu venha a dizer que: ”...nada
poderá mudar o mundo em que eu vivo, pois mergulho sempre em meditações”, de
nada me adiantará esse não movimento se ainda estiver envolto em memórias e, diante
delas, identificar coisas especiais habitando os vastos territórios virtuais do
cérebro. Mergulhado numa suposta não-ação, olhando minhas memórias como se elas
fossem um cenário de um filme, me encontro na ‘ação’ de um observador. Se eu for
muito fenomenológico nesse ‘cinema de memórias’, Freud me explicará assim ou
assado, como fruto de frustrações; se for niilista o suficiente para explodir
os altares, Nietzsche me dirá que sou a corda que fluiu do macaco; se eu for
frio e impassível o bastante para seguir em paz, serei um ser desprovido e
desconectado do inconsciente coletivo, um sociopata, segundo psicanálise moderna.
− Um sociopata está ligado a qual parte do inconsciente coletivo?
Estamos
nos movendo em direção a um mundo desprovido de personalidades híbridas, enquanto
aceitamos, passivamente, a produção em série de patologias digitais coletivas. Mas
independentemente daquilo que somos, alteramos a realidade. Assim a filosofia e
suas intenções de revelar algo lógico naquilo que nos cerca, é, na realidade,
um molde, uma forma sofisticada de alinhamento de fluxos de pensamentos com
algo ideal e nem sempre concreto.
Quero
chegar num lugar pouco confortável: de fato, segundo a psiquiatria, conseguimos
mudar o mundo, reformá-lo, revolucioná-lo, mesmo que seja com as parcas ilusões que cultivamos em
nossa mente. Seja num bloco de sofismas, num maço de verdades lógicas, ou num
agregado de metáforas, inexoravelmente, podemos alterar a realidade e assim seremos reais para todo sempre. Mas não estamos sozinhos nessa jornada: os alcaloides nos
fazem aderir ao processo com terno e gravata; a cannabis sativa nos leva à contemplação
das ruínas ocultas por detrás da decoração do mundo do consumo digital e das redes
sociais; os antidepressivos nos acoplam ao discurso cristão retrô-auto-repressivo;
o vinho nos leva à mitologia grega e às aventuras sexuais e a uma porção de tranquilidade
o suficiente para ouvirmos um LP do Pink Floyd. – Continue brilhando, louco diamante.
As substâncias
são nossas vozes, os heterônimos, o jardim no País das Maravilhas onde
nossos lamentos sobem em direção à lua. Não podemos mentir. É facil de se entender que este é o pior dos
destinos: o de sempre alterar a realidade. O pior castigo dos deuses sobre a raça humana é a impossibilidade
de mentir sobre nossa ação sobre o mundo concreto. Criamos os seres que nos amaldiçoaram ao longo do tempo e que
permanecem entre nós e o Céu despudorado das liberdades. Não podemos mentir sobre o agir! Quantas
vezes diremos isso com a ideia de que um dia seja uma mentira libertadora? Deveras não
podemos mentir sobre sempre sermos reais e alterarmos, constantemente, o mundo concreto
ao nosso redor. Eis o motivo da arte, da religião e da filosofia agirem da mesma maneira e
com o mesmo método; talvez sejam até a mesma coisa quando se
convertem em negócios lucrativos muito rapidamente. Não há sofismas no mundo da ação!
Esse é o segredo dos lunáticos que conseguiram se apoderar do mundo. Inegavelmente, eles vivem dentro de nós.