“...prefiro a
porta aberta ou definitivamente fechada!”. Todo raciocínio binário nos leva a
micro tragédias. Ou tudo é somente o sol, ou uma noite escura profunda. O
crepúsculo, um naco de tempo que não é dia nem noite, me seduz profundamente.
Representa a porta semi aberta por onde o corpo pode esgueirar-se como numa
dança: são dois pra lá, dois pra cá.
Eu jamais
mataria dez coelhos, - as lembranças -, com uma só cajadada. Nem guardaria seus cadáveres numa
gaveta, para esquecer que existiram. Dez coelhos me levariam para dez Países das Maravilhas simultâneos. Delírios
nos olhos de Alice como nas explosões de luzes da Broadway. E a lua crescente
estampada no céu, tal como o sorriso do gato Cherrie, seria o convite para livrar a princesa de sua masmorra.
O espaço-tempo
não pode cegar os olhos da alma, do coração. Isaac B. Singer me ensinou isso. Não
se esquece o que se sente. A alma vê sem olhos. As almas vêm de um mundo
distante, com a memória nublada, mergulham nos corpos e brotam pelos ventres, que
são os túmulos pra se nascer na morte. — O que chamamos de vida, as almas chamam
de morte; os ventres são portais por onde se morre em
direção à Terra. Por isso choramos ao nascer (morrer).
E quando passam a caminhar sobre a terra, as almas sabem que a porta entre a fonte de sua origem
e a terra estará sempre ‘semi aberta’. A luz passa pelas frestas, inexatas, não
binárias, não céticas. Não há fé na razão que possa apagar as pegadas na névoa
da manhã, que adentra nossas casas e traz a lembrança de outra alma, — que não
é lembrança—, mas a própria existência. Amalgamadas pela memória imemorial, as almas não
se esquecem, não podem, não sabem fazer isso. Sentem, a todo tempo, que já se conheciam
por toda essa vida (morte) no corpo, naquele pequeno instante dejá-vú: “Eu já
vi está cena, esse rosto, e eu já ouvi esta voz!”.
Tudo isso é memória. Nada é novo sobre a terra: o blues do umbigo, o túmulo de
olhos castanhos, o casamento na música de Marcelo Jeneci, o sim e o não: “...sim, eu desejo, mas não sei como alcançar o desejo!”. Nada é novo sob o
sol de nossos dias: a fúria, a frustração, a fuga, as respostas que nunca
aparecem, o álcool que desinibe e liberta as palavras que já moram no coração
há milhares de anos. Até o adeus, em italiano, ‘tchau’, é também ‘olá, como
vai?’, e é também, ‘eu já vou!’, por que nunca chegamos e nunca partimos.
Dean Moryarty disse pra Sal
Paradaise (Jack Kerouac), nas páginas do livro, On the Road: “...ei, Sal! Certa
vez fui esquecido por meu pai dentro de um vagão de carga pra NY. Foi na
parada, quando os vagabundos desciam pra mijar, o trem voltou a andar e meu pai
pegou outro vagão. Fiquei sozinho, cercado de estranhos, eu tinha 7 anos. Mas
eu sabia que meu pai estava ali pra trás, uns três ou quatro vagões depois do
meu. Esperei, e em NY eu o abracei de novo. Na realidade, sempre estivemos
juntos no mesmo trem, apesar de meus olhos de menino não vê-lo em carne e osso.
Isso é a vida, Sal! É assim que estamos mergulhados nela, nunca nos separamos.”
O capítulo
final da história do On the Road é uma viagem dionisíaca pro México. Dean
Moryarty deixa seu amigo, Sal Paradaise, adoentado numa cama, depois de
bebedeiras, orgias, chapações e volta pra Denver. Pra quem lê, ou assiste ao
filme, fica um engasgo no peito, uma ponta de decepção: um amigo abandona o
outro, assim, na doença. Mas pra quem conhece a alma da estrada, sabe que os dois sempre estarão
juntos, porque nunca estiveram separados: antes, durante e depois.
Por isso, meu
caro leitor, por mais que você queira fechar a porta pra esquecer alguém no
México, isso não será possível. Sal Paradaise e Dean Moryarty estarão sempre
juntos. Sal não foi esquecido, a estrada é um sopro contínuo que mantém a humanidade ligada, tal como os anjos (almas) de Singer, que caem na Terra e não
sabem o que fazer com essa sensação de que sempre estiveram ligados a pessoas
que vieram a conhecer aqui, com os pés sobre o chão.