sábado, 13 de setembro de 2014

Contos absurdos: o gosto irremediável do fim



À noite fui assombrado por maus pensamentos. O sono parecia uma película inacabada que não saía do lugar. No fundo da Terra o magma mantinha sua incandescência e o sol, distante, soprava sua radiação na clara noite lunar. Entre o magma e o sol, dois calores profundos, eu, sobre a superfície do mundo, com o coração frio, atinei no espanto. As únicas coisas que me acalmaram foram as equalizações de Beck, todas feitas em Saturno, diria alguém mais sábio. E como um verme sobre a maça, caminhei de coração parado. A lua era só um espelho que refletia a luz do sol.
Os animais dormiam e me lembrei que vivo cercado pela idiotice acadêmica, pelo princípio do não pensar, do sentir-se num escafandro de escuridão. Melhor se virar e seguir em frente nesse mundo circular em que eu sempre volto ao mesmo ponto e não posso desistir dele. Olhei no espelho e vi que meus lóbulos cerebrais funcionavam como engrenagens, minhas mãos calçavam luvas metálicas para construir a patologia certificada do mundo; minhas palavras eram um gráfico cartesiano medonho cheio de uma perspectiva que não era a minha.
Dançar sozinho à noite, longe dos olhos do mundo, procurando no inefável a solução que não existe, é o que se pode fazer quando o coração é frio. A ausência de deus é onisciente, queria lhe dizer coisas, mas ele não sabe nem mesmo usar as libras; a árvore deixou cair uma folha, queria me dizer algo; um ser tão perecível quanto eu. Pedi-lhe perdão por tê-la ignorado e pensado num suposto ser perfeito que não é, e que vive se escondendo na luz e/ou na escuridão profunda de minha mente.
Sinto o gosto irremediável do fim e devo me curvar a ele, como faria um balseiro, ou mesmo Buda, quando entende que nada se pode fazer sobre o mundo, porque de tão transitório que é, se torna essencialmente uma vertigem num abraço de eternidade nos acordes do meu violão. Eis meu espelho, minhas cordas estrelares, a mutação do nada que vai até o mais profundo dos vazios. Penso nos retratos dos filhos em preto e branco nalgum lugar do parque de diversões, onde no céu não havia cometa algum. Minha boca ficou seca como o Mojave, muito além do gosto do algodão doce.
Me sentei às margens do rio e pedi tigelas de arroz às pessoas do mundo, àquelas mergulhadas em afazeres descartáveis. Pensei em todas as moedas que neguei aos miseráveis da Terra. Uma dor cortou minhas vísceras. Eu tinha negado coisas a mim mesmo. Me deparei com homens vestidos de ternos e que só falavam de negócios e religiões, de apocalipses e julgamentos e de quanto o diabo devoraria meus ossos. Mas não sou um espírito?
A carne passa, o dirigível passa, o sorriso da moça passa, amarela e se torna uma passagem pra lugar nenhum. Ah! O destino que não existe, mas que passa a ocupar o sentido das trilhas que não controlamos, como ao olhar o jardim e contar as folhas e dizer que aquela, especificamente aquela, estava fadada a ser o número 999. E não poderia ser de outra forma, porque estava escrito nas estrelas, até em algumas que nem mais existem.
Vi uma velha mulher pegar uma folha seca no chão. O pato navegava livre pelo lago circular e limitado de tempo e espaço. As ondas na água eram o momento em que tempo e espaço se acasalavam diante de meus olhos que, segundo a segundo, se desligavam do mundo. Eis só mais uma forma de sentir o fim, o irremediável fim que está por vir nas ondas digitais do mundo ao qual não pertenço. Quanto menos me entrego ao desejos estoicos da vida, mais vivo me sinto e mais vezes danço com a morte de rosto colado, enquanto Beck canta que não há porque sentir medo, as histórias humanas não significam nada. Até menos um pouco. É que essa noite fui assombrado por maus pensamentos e por isso estou tão otimista. 
Sob um céu doentiamente azul do dia seguinte, a música rolou suave. O vento ressecou as frestas da pele, as árvores polinizavam livremente e a água se preparava para cair. Ao longe não via anjos e nem demônios voando livres no céu. Fluíam no vento alto com tanta arte e sem nenhum compromisso com a realidade, os abutres, os urubus, as rapinas da podridão, como se dissessem: Morra em paz, estamos aqui para nadificar você.