quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Alzheimer


Alzheimer é um dos males do século. Uma doença em que a morte vem aos poucos com o desmanche do cérebro. Tudo começa com esquecimentos de tarefas corriqueiras e um dia se instala definitivamente com uma crise que mescla agonia, desespero e raiva. Já nem me lembro quando foi que minha tia me ligou dizendo que minha mãe não estava bem. Dizia que era uma filha de criação e que não pertencia àquela família. Fui em socorro. O que faria?
Ao lado dela, no sofá, mostrei-lhe a foto de seu irmão mais velho, o boêmio de alta estirpe, Jayme Mello, e lhe disse, “...se você é filha de criação, seu irmão mais velho também é, porque ele é a sua cara, só falta o bigodinho e o violão!”. Ela caiu na gargalhada. Aquela crise, especificamente, fora vencida.   
Mas o processo degenerativo continua e não me foi possível, como ser humano, entender, à época, o motivo disso. Sempre me perguntava: “...como que espiritualmente isso pode ser uma evolução? Haverá um dia em que ela se lembrará de que se esqueceu de tudo?”. Bem, sem respostas, segui em frente e veio a segunda crise: o retorno para a própria casa. Ao perder a noção de tempo e espaço, ela não reconhecia mais a própria casa, então queria retornar pra ela, porque sua mãe a esperava e já deveria, àquela hora, estar preocupada. No começo todos nós nos esforçamos para convencê-la de que a mãe, nossa avó, morrera em 1978 e que ali, onde estava com os dois pés, era a casa em que sempre havia morado. O que ajudava nesse momento eram as voltas de carro. Íamos mostrando as ruas, as pessoas e ela se achava de novo.
 O problema foi o número de vezes tivemos que fazer isso por dia. Normalmente umas quatro vezes. Nessas horas passamos a dar importância às coisas que nos são invisíveis, e/ou insignificantes, sobretudo quando estamos de posse de nossa arrogância. Coisas como: o pio do trinca-ferro do vizinho; o carro do fulano; o próprio fulano que aparece na janela; a árvore que faz sombra na porta da casa daquela conhecida que mora mais à frente; os pontos de comércio e seus respectivos donos; os fatos mais prosaicos como quando os netos passeavam de ônibus circular e de tão entusiasmados que ficavam com a avó, pareciam que iam se jogar da janela. Tudo traz a pessoa de volta, mas só por alguns minutos.
Um dia, nesse período em que sempre queria ir embora pra sua casa, me perguntou de maneira discreta e confidente, “...afinal, quem é a sua mãe?”. Eu sorri, reação que até hoje me espanta. Respondi-lhe dizendo seu nome. Dessa vez foi ela quem se espantou e me disse, “...nossa, é igual ao meu nome!”. Num outro dia, dessa mesma fase, ouvi ela falar de mim, pra mim mesmo, como quem fala a um amigo. E eram coisas boas de ouvir. Entre elas, “...sabe o meu filho, o Sávio, toca violão muito bem! Já ouviu?”. – Mãe é mãe, mesmo com Alzheimer.
Mas essa fase também passou e estamos, agora, como num mundo à base de fantasias. Ela vê pessoas, coisas, conversa com a TV, pega objetos imaginários no chão e às vezes nos mostra cenas do passado. Já me mostrou correndo na calçada, atrás do cachorrinho que tínhamos, quando vivíamos na rua Roberto Guarani, 154, nos idos de 1975. Sei a data por causa do nome do cachorro: “...olha lá o Savinho correndo atrás do Bingo! Viu como ele é rápido?”. Disse isso enquanto apontava pra debaixo da mesa de jantar.  
Tenho tocado violão pra ela. A memória afetiva não se desmancha. Talvez seja esse o segredo da espiritualidade que só agora entendi. Ou penso que entendi. Dias desses comecei os acordes de Stairway to heaven, do Led Zeppelin. Eu ouvia isso à exaustão quando era adolescente. Quando as notas entraram por seus ouvidos, ela levantou os braços, como numa celebração, e chorou. − Minha mãe, mesmo de dentro daquele cérebro que se espatifou como o barco de Robin Crusoé nos rochedos, ainda percebe sentido da vida e ela é boa. − Depois que acabei de tocar, ela disse: “...essa música é linda! Linda!”. Em seguida foi pegar um objeto invisível no chão. Bem provável que fosse um diamante, uma pérola, ou alguns grãos de areia da praia em que Robson Crusoé desembarcou.
A única coisa que nos cabe é silenciar. Sorrir. Dar carinho. Às vezes chorar e seguir em frente, com dignidade e paz no coração. A música mm fez entender isso. No meio de todos aqueles destroços está a figura humana que conheci quando desembarquei na Terra, ainda criança, há décadas, mas ela já estava lá, pronta para preparar meus primeiros passos e me alimentar com o próprio leite.
Dona Cida, não me lembro da última vez que lhe disse que a amava, mas nunca é tarde pra se dizer isso. Dessa forma, nós e o Led Zeppelin, vamos passar mais um Natal juntos, depois de tantos outros que passaram em vão. Beijos.