Alzheimer
é um dos males do século. Uma doença em que a morte vem aos poucos com o
desmanche do cérebro. Tudo começa com esquecimentos de tarefas corriqueiras e um
dia se instala definitivamente com uma crise que mescla agonia, desespero e
raiva. Já nem me lembro quando foi que minha tia me ligou dizendo que minha mãe
não estava bem. Dizia que era uma filha de criação e que não pertencia àquela
família. Fui em socorro. O que faria?
Ao
lado dela, no sofá, mostrei-lhe a foto de seu irmão mais velho, o boêmio de
alta estirpe, Jayme Mello, e lhe disse, “...se você é filha de criação, seu
irmão mais velho também é, porque ele é a sua cara, só falta o bigodinho e o
violão!”. Ela caiu na gargalhada. Aquela crise, especificamente, fora vencida.
Mas
o processo degenerativo continua e não me foi possível, como ser humano, entender,
à época, o motivo disso. Sempre me perguntava: “...como que espiritualmente isso
pode ser uma evolução? Haverá um dia em que ela se lembrará de que se esqueceu
de tudo?”. Bem, sem respostas, segui em frente e veio a segunda crise: o
retorno para a própria casa. Ao perder a noção de tempo e espaço, ela não reconhecia
mais a própria casa, então queria retornar pra ela, porque sua mãe a esperava e
já deveria, àquela hora, estar preocupada. No começo todos nós nos esforçamos para
convencê-la de que a mãe, nossa avó, morrera em 1978 e que ali, onde estava com
os dois pés, era a casa em que sempre havia morado. O que ajudava nesse momento
eram as voltas de carro. Íamos mostrando as ruas, as pessoas e ela se achava de
novo.
O problema foi o número de vezes tivemos que
fazer isso por dia. Normalmente umas quatro vezes. Nessas horas passamos a dar
importância às coisas que nos são invisíveis, e/ou insignificantes, sobretudo quando
estamos de posse de nossa arrogância. Coisas como: o pio do trinca-ferro do
vizinho; o carro do fulano; o próprio fulano que aparece na janela; a árvore
que faz sombra na porta da casa daquela conhecida que mora mais à frente; os
pontos de comércio e seus respectivos donos; os fatos mais prosaicos como
quando os netos passeavam de ônibus circular e de tão entusiasmados que ficavam
com a avó, pareciam que iam se jogar da janela. Tudo traz a pessoa de volta,
mas só por alguns minutos.
Um
dia, nesse período em que sempre queria ir embora pra sua casa, me perguntou de
maneira discreta e confidente, “...afinal, quem é a sua mãe?”. Eu sorri, reação
que até hoje me espanta. Respondi-lhe dizendo seu nome. Dessa vez foi ela quem
se espantou e me disse, “...nossa, é igual ao meu nome!”. Num outro dia, dessa
mesma fase, ouvi ela falar de mim, pra mim mesmo, como quem fala a um amigo. E eram
coisas boas de ouvir. Entre elas, “...sabe o meu filho, o Sávio, toca violão
muito bem! Já ouviu?”. – Mãe é mãe, mesmo com Alzheimer.
Mas
essa fase também passou e estamos, agora, como num mundo à base de fantasias. Ela
vê pessoas, coisas, conversa com a TV, pega objetos imaginários no chão e às
vezes nos mostra cenas do passado. Já me mostrou correndo na calçada, atrás do
cachorrinho que tínhamos, quando vivíamos na rua Roberto Guarani, 154, nos idos
de 1975. Sei a data por causa do nome do cachorro: “...olha lá o Savinho
correndo atrás do Bingo! Viu como ele é rápido?”. Disse isso enquanto apontava pra
debaixo da mesa de jantar.
Tenho
tocado violão pra ela. A memória afetiva não se desmancha. Talvez seja esse o
segredo da espiritualidade que só agora entendi. Ou penso que entendi. Dias desses
comecei os acordes de Stairway to heaven, do Led Zeppelin. Eu ouvia isso à
exaustão quando era adolescente. Quando as notas entraram por seus ouvidos, ela
levantou os braços, como numa celebração, e chorou. − Minha mãe, mesmo de dentro
daquele cérebro que se espatifou como o barco de Robin Crusoé nos rochedos, ainda
percebe sentido da vida e ela é boa. − Depois que acabei de tocar, ela disse: “...essa
música é linda! Linda!”. Em seguida foi pegar um objeto invisível no chão. Bem provável
que fosse um diamante, uma pérola, ou alguns grãos de areia da praia em que Robson
Crusoé desembarcou.
A
única coisa que nos cabe é silenciar. Sorrir. Dar carinho. Às vezes chorar e
seguir em frente, com dignidade e paz no coração. A música mm fez entender
isso. No meio de todos aqueles destroços está a figura humana que conheci
quando desembarquei na Terra, ainda criança, há décadas, mas ela já estava lá,
pronta para preparar meus primeiros passos e me alimentar com o próprio leite.
Dona
Cida, não me lembro da última vez que lhe disse que a amava, mas nunca é tarde
pra se dizer isso. Dessa forma, nós e o Led Zeppelin, vamos passar mais um Natal
juntos, depois de tantos outros que passaram em vão. Beijos.