O sol estava a pino. Eu estava sentado no topo da
escada, de frente pra rua e pro mundo. O carro parou. Meu pai desceu dele com
um livro nas mãos. Eu tinha uma prova no outro dia e ainda não tinha começado a
ler a história, porque não havia pedido o livro que fora marcado há mais de um
mês. O Rei do rio de ouro, era esse o nome.
Comecei a ler ali mesmo. Meu pai o entregou ao passar
por mim em passos operários, era um mecânico. Depois eu ouvia o barulho de seus
talhares no prato do almoço lá na cozinha, enquanto eu lia os primeiros parágrafos.
A história do livro acontecia em lugar nenhum. Um menino que tinha dois irmãos
maiores que eram maus. O Rei do rio de ouro era um duende que recebia, ao final
da história, um pedaço de carne de um assado que o menino vigiava e não deveria
comer. O resto eu não me lembro. Entendi que o menino fora bom ao dar sua parte
ao pobre Rei do rio de ouro, mesmo ficando sem nada para comer. Os dois irmãos
viraram pedra, e o menino foi premiado ao final.
Não tirei nota boa nessa prova. Senti que meu esforço
fora em vão. Um desperdício; eu já estava na 5ª série ginasial. Mas posso dizer
que a primeira história que me tocou profundamente foi sobre a floresta do
sono, num livro de português que eu usara na 3ª série do primário. Havia um
desenho de um rio cercado de árvores e os animais dormiam às margens e nos
galhos. Ainda me lembro da figura do hipopótamo, com seus olhos fechados, e com
a metade do corpo pra fora d’água. Todo animal que por ali chegava, adormecia. Eu
adorava o enredo.
Depois eu fui ler Os patins de prata, uma história holandesa
onde um pai criava, com dificuldades, um casal de filhos, Hannah e Hans, se não
me engano, desde a morte da mãe. Era uma família pobre e Hans patinava como um
capeta. Ele ainda salvou a cidade de uma inundação, porque havia enfiado o dedo
num buraco da parede do dique que circundava a cidade. Passou a noite inteira
evitando a tragédia, venceu o frio, o medo e se tornou um exemplo. Depois venceu
a competição de patins e levou o prêmio, que eram os patins de prata.
Mais tarde, no meio do ginásio, li um livro que se
chamava, Nas terras do rei café. Uma viagem a um mundo paralelo que depois, ao
final, era definida apenas como um sonho. Gostei muito desse livro, talvez pela
fuga, pela aventura a um universo perdido em meio a uma mata. Com certeza, o autor,
que não me lembro o nome, havia se inspirado em Alice no país das maravilhas,
mesclando pitadas de Monteiro Lobato. – Do bom e velho Lobato gostei de ler O
saci, onde perdi o medo do escuro.
Alabardas, Alabardas! O último livro que ainda não
li, é um texto inacabado do mestre Saramago. Comprei o livro esses dias, tem a
frase parada no tempo, incompleta, no alto de uma página, a última que ele
escreveu. Depois, imagino, sua vida foi uma sequência de fatos que ocorreram
em horas, talvez num ou dois dias e a morte veio lhe tocar nos ombros. Então se abriu
diante de seus olhos os portais da floresta do sono. Tornou-se uma pedra, pra
sempre, no próprio quintal, em sua terra natal do exílio, a própria literatura
portuguesa plantada num solo vulcânico.
Alabardas, Alabardas! Nas terras do rei do café.