sábado, 19 de julho de 2014

O bosque é o pensamento


Gunter Grass é minha antítese ao escritor judeu e Nobel de literatura, Isaac Bashevis Singer, e por si só, o outro lado da mesma moeda. Um menino alemão que foi seduzido pela juventude hitlerista e, durante a 2ª Guerra mundial, se alinhou aos valores, discursos e ‘sonhos’ arianos; uma criança, que como milhões de outras, não percebeu a força maligna do Estado nazista trespassando por seu corpo, sua mente e criando alicerces em suas palavras e em seu coração. Mas ele sobreviveu ao pesadelo e se tornou um homem livre dessa praga. E tal como Singer, escolheu a literatura como trabalho e produziu livros belíssimos. Um deles conta a história do último ser humano que ainda sobrevive num mundo pós-apocalipse-radioativo. Até certo ponto um enredo normal, não fosse a morada desse Crusoé às avessas, a ‘mente’ de uma Ratazana.
A tal Ratazana, que também dá título ao livro, conversa com seu amigo humano exilado em suas lembranças através do pensamento. Por vezes ela o ameaça, “...diga isso de novo e nunca mais penso em você e assim poderá morrer no esquecimento”.  A triste figura humana, flutuando na mente da roedora, pede desculpas, pois sabe que não tem alternativa: pra continuar a viver, precisa aceitar as críticas ácidas desse animal repugnante, além de ver os fatos armazenados em sua memória como se fosse num cinema tétrico. Várias lembranças aparecem diante de seus olhos, são 'filmes' e mais 'filmes'. Num deles há o último bosque ainda 'vivo' na Alemanha. Para defendê-lo do fim inexorável, todos os personagens dos contos de fadas clamam aos povos que os ajudem: "É preciso salvar o bosque!"  
        Porém o governo alemão se prepara para inaugurar um bosque irreal, a única maneira de enganar o pensamento crítico. Se trata de um bosque de plástico, uma ilusão, um fake para atender aos personagens dos contos de fadas que logo concluem que, viver diante de um bosque de plástico é o mesmo que viver diante de falsos pensamentos. -  Assim são revelados os últimos suspiros da Terra nas várias narrativas paralelas que atormentam o último homem e ao leitor também, que está na mesma situação desse sobrevivente terminal: não há mais Terra, só a mente da Ratazana sobre escombros, chorume, ácido e uma revisão histórica sádica e sarcástica.       
Em meus devaneios o bosque é habitado por ninfas, as quais a humanidade ama profundamente. A sedução das árvores, do vento, das sombras nas profundezas me atraem constantemente. Meu Ego me diz que elas estão brincando comigo, que riem de mim pelas costas, que criam coisas fantásticas para um homem velho que se mantém em guarda diante do bosque e não sabe se segue em frente, ou se retorna. Mas eu não ligo. Os sonhos, o amor são poderes que também pode destruir o que sou; tal como a morte o fará.
Sabina Spielrein, paciente de Carl Jung, em 1906, que 'havia ficado louca' porque sentia prazer com a dor, e logo só poderia ser uma aberração, sabia que o amor liberta porque destrói. Não me importo em ser feito em pedaços. Morreria mil vezes para sentir, de novo, o néctar do vinho da juventude das ninfas e depois uma carícia na pele eternamente jovem dessas belezas mitológicas.
Quanto mais as amo, mais minha alma flutua e me torno jovem; as impurezas do corpo se transmutam em estrelas cadentes. Como não amá-las, como não morrer diante de olhos castanhos tão ambíguos, como não adentrar no bosque e abraçá-las à revelia da história, do destino? – Digo a meu Ego que quando as amo, nos poros da tarde, no passar das horas, passo a ser barbaramente o que sou. Desejo despudoradamente ser ainda mais eu mesmo e sem piedade alguma. Ali está o bosque, ‘sombrio, atraente e escuro’ e com dúbios olhos castanhos. Às vezes não percebo que as árvores são metálicas. Carvalhos de bronze, pinheiros de cobre; mas ao toque dos dedos, sinto que é tudo madeira nobre. 
Sabina morreu na Rússia, assassinada pelos ‘heróis nazistas da infância’ de Gunter Grass, dentro de uma sinagoga, na 2ª Guerra mundial. A filha estava junto dela. Em seu diário, encontrado anos depois, pedia que quando a morte a levasse, que fosse cremada e suas cinzas jogadas num bosque e que uma placa com a inscrição, “Aqui jaz Sabrina Spielrein, alguém que também viveu e morreu como um ser humano.”, celebrasse sua jornada pela Terra e, finalmente, seu descanso na escuridão do bosque.