quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Contos absurdos: a loucura

Foi depois que conheci a loucura que entendi o papel importante das coisas mais singelas, como as fotos sobre os móveis, as imagens de aniversários gravadas nos VHS embolorados, os cachos dos cabelos dos filhos que guardamos em pequenas caixas e quando as revisitamos, eles ainda parecem novos e adormecidos, reluzem como se tivessem sido cortados ontem. Isso revela quem somos, são espelhos sem reflexos do que escolhemos ser, percorrer, tentar viver. Agora que estamos aqui, deixa a chuva molhar sem medo. Isso esconde a tristeza, e preenche o nada que nos cerca.
A loucura é um descompasso que criamos com a própria cabeça. Ela é de livre acesso, democrática, basta chamá-la que atende prontamente. Eu escrevo para não enlouquecer, se eu não tivesse a palavra e a tela em branco, provavelmente esse lixo todo ficaria circulando em minha cabeça. São resíduos que necessito expelir, são fezes racionais, elucubrações, vaidades, desabafos. Mantenho uma desconstrução contínua do ser residual que há mim e vive em eterna potência virtual e nunca será verdade, desde que seja sempre exilado pelo ato da escrita, caso contrário, ele pode me matar. Repito: preciso assassinar constantemente a mim mesmo ao expelir ideias escritas, senão acabo morto pelo monstro que brotará em mim, caso eu me silencie. Confuso? Creio que sim, mas qualquer um pode facilmente se ver dentro de algo parecido.
Mas há uma questão ética: o que escrevo para destruir meu eu residual causará reações nos outros? Aqueles que por ventura vierem a perder tempo para ler o que escrevo terão seus destinos mudados, refeitos, alterados, e/ou tudo isso junto e a responsabilidade será minha? Penso que posso me sentir responsável por essas reações nalgum dia desses e talvez me sinta importante ao ter tal sentimento. Em contrapartida, qualquer psicanalista diria que a culpa que achamos que sentimos, em função daquilo que fazemos aos outros, é só uma mistura de vaidade com uma maneira de ocupar o centro das atenções. Em suma, uma ressaca por falta de aplauso, por não saber brincar de pique esconde. Igual àquele grande momento na beira mar em que achamos melhor destruir o Castelo de Areia, por ser ele a própria contingência, e já que estarmos cientes de que logo o mar virá mesmo removê-lo de sua beleza, então o executamos antes disso. Por que, afinal de contas, somos seduzidos a destruí-lo antes da onda derradeira?
Enquanto escrevo, crio um antídoto para o Golem que anseia nascer constantemente das minhas entranhas encefálicas. E isso faz de mim alguém ético, responsável. Se eu deixar o monstro emergir do epicentro do eu ao desistir de escrever, sonhar, gozar, ter afeto, ser amado e amar e desejar construir efemeridades, tal como a morada eterna num barquinho de papel, ou imaginar-me sempre forte e invencível como os absolutos cães de seda japoneses, também eu não estaria a criar reações nos destinos alheios e desencadearia ações muito piores nos outros? Kharmas e kharmas e kharmas destilados para todos os lados nas não palavras escritas; gestos e desamores e truculências de um Golem em ato residual por falta de um desejo de sonhar os próprios sonhos. Me transformar num não sonho pode ser muito pior aos outros.  
Claro, seria loucura dizer que toda essência está centrada na manipulação dos próprios desejos. Não há nada fora do sistema porque não há sistema. O que há é uma não vida, uma não satisfação pelas pegadas na areia. Tudo é perecível e navega incessantemente para sua dissolução, mas temos olhares de deuses nos poucos segundos em que ‘vislumbramos’ nossa obra, nossa escultura de neblina. Aqueles vapores que exalam do chuveiro podem nos levar à ideia de que seria melhor morrer. Mas nada seria novo, ‘de novo’, sob o céu, pois é só mais um desejo de que a própria morte seja uma escultura de vazio e de ausência. Mesmo depois de arquitetar a própria morte e sonhar com ela, a imaginação continua atrelada ao 'o quê' as pessoas sentiriam depois de nosso mergulho no túmulo. De novo, a reação dos outros. Ad infinito. 
Sim, eu quero que os outros reajam ao que eu faço e gostem de mim e que eu seja importante porque amo, escrevo, toco e danço nas tardes de sol e chuva. E tudo isso fica muito melhor com mescalina. E eu nunca experimentei. Quem sabe, quando ficar mais velho?