A copa do imenso salgueiro balançava lentamente às margens do rio, eu estava em sincronia com a leve brisa vesperal e uma profunda paz, aliada à força do tempo, brotou da garganta; foi exatamente desse lugar que eu disse, Beck, aquele ao pé
da árvore é Sidarta? Posso lhe dizer que não há outro sob a árvore! Vou me ajoelhar diante dele e pedir perdão. Acredito que ele não o perdoará.
Por quê? Ele é o ‘único deus’ que não pode perdoar, porque não vê pecado em
ninguém. O que isso quer dizer? Que só você pode entender que não há culpa
nenhuma, pra qualquer lugar que você for, o que você é, estará sempre no seu
coração. Quer dizer que mesmo que ele me perdoe de nada adiantará? Sim, só um
farsante perdoa, já um deus verdadeiro faz você olhar pra dentro de si mesmo para
que você entenda o que se passa. Ou o que não aconteceu, não existiu, não foi
real! Isso, você é inteligente, mesmo quando está triste.
Em meio a um movimento de carros com suas luzes estressadas,
com o metal subindo aos céus, frutos de projetos nascidos das cabeças dos
homens, impregnando o mundo de um sentido desprovido de ternura e conforto pra
alma, me sinto letárgico, um observador de um filme, mas sou eu quem vai em câmera
lenta, na contramão do mundo, a música nos ouvidos, ‘desolhando’ tudo,
ansiando pelo reverso da memória, pela benção do esquecimento, braços abertos à
espera do desconhecer, desejando uma dose de amor próprio que cicatrize a carne
esfolada por dentro. O metal que dilacera lentamente as cavidades da costela, tal
como se um deus egoísta quisesse meus ossos para criar outro fantoche, é perene, e eu preciso entender que Sidarta nada poderá fazer, mas é a companhia dele a
única possível pra se olhar o mundo.
Beck, não sabia que você gostava de narguilê!? Cóf, cóf,
...é um hábito árabe, turco! Sidarta é da índia! Que diferença isso faz? Ele pode
não gostar! Isso é o que menos importa, já a árvore e o rio são imprescindíveis
para que você se entenda! Beck, não seria melhor me desentender? Esquecer é uma
das maiores artes de mundo, digo porque muitos confundem esquecimento com
confinamento das memórias no subsolo da mente. E como fazemos para tudo virar
pó? A maioria dirá que o tempo é a única solução para nos curarmos de coisas
que surgiram assim, sem explicação, mas logo em seguida, e esse é o problema da
humanidade, surge o mesmo desejo de novo, só que com outro cenário, outros
personagens, mas sendo a mesma história. É disso que Sidarta quer nos libertar?
Se ele vier a querer algo, ele então não será ele, pois haverá um desejo. Entendi,
Beck, ele só indica o caminho, desde que você o queira trilhar.
Sidarta se levantou do pé da árvore e me indicou o
outro lado do rio. Gesticulou amavelmente a cabeça com a mesma beleza de um
acorde extraído de uma cítara e foi na direção oposta. Ei, Beck, aonde ele vai?
Pô, um deus que passa um dia inteiro meditando tem que descansar! Beck, ele não
é um deus! Que diferença isso faz! Deus ou homem, eis a questão?! O primeiro vive
eternamente em agonia porque tudo não foi como ele planejou, o outro sonha o
infinito em desejos contínuos, mas morre antes de saciá-los e acaba num túmulo, e talvez pra sempre! Então melhor ser um homem!
Chamamos um balseiro e ele nos atravessou. O céu era
vermelho, o sol não nos esperaria por mais muito tempo. Pisamos na outra margem
e uma imensa cebola nos aguardava sobre uma mesa com velas, incensos e flores.
Beck, o que faremos? Eu vou me sentar e tocar nobody’s fault but my own pra
você. E eu? Acho que deve tirar cada camada da cebola e ver o que há lá dentro,
no âmago. Minhas mãos vão ficar fedendo cebola! Pra isso existe o rio. Não tinha
pensado nisso!
Enquanto Beck cantava, fui tirando camada a camada
da cebola e em cada uma delas havia um texto longo por demais e que eu não
conseguia ler. Meu desejo de chegar ao centro de tudo era maior que minha capacidade
de processar. Então me deparei, finalmente, com um busto em que o rosto era o
meu. Pra minha alegria, era feito de manteiga e começou a derreter assim que
olhei para ele. Eu não poderia orar pra mim mesmo, nem agradecer, nem fazer promessas, nem justificar nada, eu apenas existia enquanto rumava pra inexistência. Beck, tudo segue para seu fim e eu não posso fazer nada, é isso o que diz a estátua dentro da cebola?! Você pode,
sim, fazer algo! O quê? Chamar o balseiro para que possamos voltar ao mesmo
lugar em que estávamos e ver como tudo sempre fica novo.
No outro lado do rio me sentei no lugar de Sidarta. Sei que foi muita arrogância. Ei, Beck, vamos tomar um vinho enquanto você canta?! Assim foi feito e então disse a ele: o deus que há em mim saúda o vinho que começa a circular em você! Sim, agradeço, mas lembre-se: não há culpa nenhuma, porque nada de errado foi feito, isso tudo é ‘só a existência’ humana!