quinta-feira, 23 de junho de 2011

Quaresma

(Sobre texto de Mouzar Benedito)

..... Sua mãe o havia batizado como Quaresma. Trabalhava como ajudante numa borracharia. Vida dura, filhos pra criar e pouco salário. Mas às sextas-feiras o dono da borracharia liberava um churrasquinho; mas só depois do expediente. Em meio a pneus e ferramentas, sujos de graxa, os funcionários da borracharia recebiam no rosto a luz do carvão em brasa, em meio aos tijolos improvisados como churrasqueira. Sonhavam com tempo melhores, que seria igual a dinheiro no bolso. Além da carne, havia a cachaça e, naquele dia, Quaresma pouco falou; apenas divagou pela própria cabeça.

Passou o fim de semana e na segunda-feira, bem pela manhã, se demitiu. O patrão, boquiaberto, não encontrou resposta para o ato. Só mais à tarde o vento trouxe as novas: Quaresma ia abrir uma igreja na garagem de sua casa. Agora ele seria o Pastor Quaresma. Junto dos filhos pintou o cômodo e até desenhou uma cruz na parede do fundo, que para pessoas mais minuciosas, Cristo ali crucificado, teria o braço esquerdo maior do que o direto; mas ninguém percebia a diferença, só se olhasse muito de perto.

Até ao fim da semana já tinha 10 freqüentadores. Com 10% de dízimo de cada um, detalhe: todos os freqüentadores recebiam salário mínimo, conseguiu o seu salário mínimo sem grandes esforços. Impulsionado pela demanda do mercado, calculou que 20 freqüentadores dar-lhe-iam 2 salários mínimos. 30 freqüentadores, a glória dos 3 salários mínimos. Sua garagem não suportaria 40 freqüentadores. Quando alcançasse um número maior do que 40, já seria hora de criar uma franquia. Quaresma era movido pelo sonho da prosperidade e tinha um espírito empreendedor.

Um dia, foi visitar os velhos amigos na borracharia, foi de roupa nova, já tinha 30 freqüentadores. O ex-patrão ficou curioso e perguntou ao Quaresma onde ele havia estudado para ser Pastor. Quaresma respondeu:

— Pela manhã escuto aos programas de rádio evangélicos e católicos e de noite repito tudo, no púlpito da minha igreja.

Era mamão com mel. O ex-patrão ficou encantado com a esperteza de Quaresma, mas depois pensou se isso não seria errado. Mas preferiu o silêncio, como todo o restante da sociedade que circundava o Quaresma.

Mas nem tudo são rosas e um dia, findado o culto, parou um carro à porta da igreja do Quaresma e homens de preto, gorro na cara, invadiram o local e quebraram as cadeiras, deram uma bolachas no pobre Quaresma e mandaram ele fechar, senão, quem apanhariam na próxima seriam seus filhos. Quaresma chorou diante do fim do sonho. Mais tarde descobriu que os homens trabalhavam para outro Pastor, que não queria concorrência, uma espécie de Al-Capone das igrejas. Quaresma ainda não podia arcar com a segurança de sua igreja. Resolveu fechar. A mulher o abraçou e disse a ele que era um bom homem. Talvez um dia chegasse lá.

Sem outro remédio, voltou pra borracharia e o ex-patrão tornou-se patrão outra vez. Quaresma tinha filhos e era um homem bom, tanto que quase virou Pastor da noite pro dia. Os colegas de trabalho também o consolaram; ainda lembraram que sexta-feira teria o velho churrasquinho de sempre.

E foi assim, de novo diante das brasas do carvão que um colega de Quaresma o tirou de sua tristeza, ao perguntar-lhe:

— Já pensou em abrir um centro espírita?