quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Eus







Não fosse nossa consciência, seria fácil de nos definir como algoritmos de carne e osso. É fato que ainda não sabemos se nosso cérebro é capaz de um armazenamento infinito de dados e até aonde vai nossa memória, em volume. Há uma variável: o tempo que vivemos, somado à maneira de como memorizamos, processamos e edificamos uma consciência sobre o que temos em mente. Isso nos faz, de maneira constantes, seres subjetivos.
Fisicamente, sobre o cérebro ainda, somos tentados a determinar-lhe um limite de cálculos. Mas nossa mente parece poder associar imagens e fazer analogias em quantidades infinitas. Nossa consciência passa a perceber o que a mente é capaz de sonhar, pensar, teorizar por caminhos que vão da razão ao absurdo. Somos seduzidos pelas limitações da educação tradicional a enquadrar a realidade ao racional básico; ainda não entendemos que tanto o absurdo, quanto o lógico, o bizarro e o assombro formam a realidade, a concretude que nos circunda e com a qual interagimos por meio da cognição de pacotes de informação via percepção.
Charles Darwin observou as gerações das espécies ao longo do tempo e se deparou com o poder da hereditariedade advindo da fascinante gestação dos seres vivos por eles mesmos. Os genes, unidades mínimas da genética, que transmitem características físicas e funcionais de nossos antepassados, possuem um desejo de retornar ao que já foram, apesar de cada vez que venham a nascer para manter a sobrevivência da espécie, tornarem-se aptos às exigências do mundo exterior; o que causa as mutações.
Darwin percebeu uma inclinação nos genes, um ‘desejo’ de reverter o fluxo da evolução pra origem, pra fonte, de onde toda matéria orgânica veio evoluindo há bilhões de anos. Nosso primeiro sentimento de religar-se a algo maior do que nós é inconsciente e evolutivo, como se quiséssemos romper a barreira do tempo e espaço. Do instinto à metafísica, por meio de desejo de um ‘eterno retorno’.
A mutação de fenótipos e genótipos ocorre, não só pela seleção natural, mas também na direção de nossos avós e tataravós. Sim, Darwin me ensinou que posso ser o encontro de meu tataravô com meu avô em mim mesmo. Sou o Avatar deles, viajantes dos séculos XIX e XX, respectivamente. Essa foi a maneira que encontraram para visitar o futuro, e o fazem através de meus olhos e por meio de minha consciência que emerge de neurônios feitos de partes dos genes que já foram deles. Agora eu sou o portador do anseio do retorno ao passado que sempre caminha do presente ao futuro. Santo paradoxo.   
Somente Fernando Pessoa poderia suportar a ideia de ser um Avatar de heterônimos possuidores de vários antepassados diferentes e não consangüíneos. Imagine, leitor, o peso da carga: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e ‘Ele’ mesmo, Fernando Pessoa. Se pudéssemos calcular, exponencialmente, os tataravós e avós desses heterônimos, todos fundidos nele pela evolução, Pessoa revelar-se-ia uma Legião de personas em ato. Deveras, Pessoa foi uma Legião porque era muitos e em todos, sofreu as durezas da condição humana.
Sei que a ciência determina que grande parte da hereditariedade ocorre por meio da herança dos genes recessivos, que são ‘explicados com clareza’ pelos professores de biologia em ‘claríssimos’ exercícios num quadro cheio de AA e Aa que terminam em outros AA e Aa e tudo fica ‘claro’ como numa noite sem luar. Mas esses genes não transmitem somente a estrutura física, suas características e potenciais inclinações às patologias, mas também a personalidade, o temperamento, a fantástica tendência de mergulhar numa profunda solidão e fugir do mundo; ou mesmo a subjetiva espiritualidade que baseia-se em algo metafísico.
Claro que não menosprezo a influência social, dos aspectos culturais, ou mesmo não me esqueço das velhas histórias de irmãos gêmeos que são criados separados e formam personalidades diferentes no decorrer da vida. Dependendo do lugar em que se é criado, tataravós e avós ficam adormecidos, não são acionados e desaparecem na superfície da personalidade de seu avatar. Uma estranha morte que mistura esquecimento com falta de estímulo repetidos pelo meio ambiente e que os genes já têm em memória. E assim surgem novos seres com novas personalidades.
Poeticamente falando, somos em ato, em si mesmos, o que já fomos no passado. Seres que sempre nascem com um desejo que pode ser explicado como um contínuo pulso de um eterno retorno de si mesmos e que edificamos para uso próprio e para manutenção do grupo em que vivemos. Somos Sartre e Nietzsche: o ser em si mesmo e num eterno retorno. Genótipo/fenótipo, mutação, hereditariedade em ad infinitum. Dessa forma, ‘claro’, somos algoritmos. Que Loucura! No início eu disse que não podemos ser algoritmos. Seríamos, então, uma possibilidade infinita de multiplicação de algoritmos finitos?